“Polifonias do ser-enquanto-gente”, por Priscilla dos Reis Ribeiro

Deus é uma saudade desse emaranhado de gentes que me compõe. É impressionante e assustador ao mesmo tempo olhar para dentro de si e ser hábil para identificar atos, palavras, sensações que carregamos a partir dos contatos que estabelecemos na vida. Essa herança nos vem por meio do afeto e da confiança mas também pela via das decepções.

Já dizia o samba que a solidão apavora quando tudo se demora em ser tão ruim. Pois bem, se por um lado as cicatrizes que carregamos no corpo e na alma são mapas das travessias que empreendemos, na outra mão a dor que sobra como resquício das memórias por vezes não digeridas, é alimento para nossas constantes revoluções pessoais. E nesse movimento dialético beirando o antropofágico, vamos nos constituindo pessoa humana.

Ter o hábito de ouvir as vozes das pessoas que carregamos no meu peito é saber que nem sempre a narrativa nos supre de afetos bons mas é da vida compreender que há que se macerar, bater, moer, amassar os acontecimentos para que estes sejam processados pelo coração. De qualquer maneira, este emaranhado de vozes que nos faz ser quem somos, acaba por nos ensinar a sermos nós mesmos. Parece contraditório mas é intensa esta experiência, visceral na mais profunda acepção do termo pois não é possível dissociar tudo que vivemos de como nos pensamos, nos vemos e nos movemos no mundo hoje. 

Digo por mim: vicejo gentes e semeio em outros tantos corpos-território; tenho responsabilidade pelo valor das sementes que lanço, procuro escolher as melhores, lançar em muitas direções, aguardar olhando os campos, rezar para que haja chuva boa que seja carinhosa para a terra-mãe e traga pro olhar a força que arrebenta no oculto do chão-coração, vasto e fértil, simultaneamente misterioso e tão familiar.

Perceber-se esse somatório de vozes, polifonias do ser-enquanto-gente com raízes robustas, ervas daninhas, flores perfumadas, troncos grossos, folhas ainda verdes, galhos ressequidos é sabença da beleza de enxergar-se natureza. A pedagogia divina aponta que as estações vêm e vão e que não urge sentir uma saudade dolorida do melhor vivido sob o sol dos dias dourados do verão, do céu deslumbrante do outono, das chuvas do inverno ou até mesmo do florescer exuberante da primavera. Os ciclos… ah, os sábios ciclos da Casa Comum são mestres dos tempos de florescer ou ressequir-se.

Da mesma forma que não precisamos carregar o peso de troncos mortos nem frustrações pelas sementes que não germinaram ou por frutos desprezados que ficaram pelo caminho; os ciclos retornam para ensinar, de maneira renovada e tão antiga, impregnado da poética dos tempos que é do mover-se no mundo o desafio sempre constante, sempre agudo, sempre doce de resistir. E ver a passagem dos dias, meses e anos com a certeza luminescente de que a dádiva consiste em ser caminhante. 

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