“Tristeza, por favor vá embora…”, por Cláudio de Oliveira Ribeiro

O difícil e tenebroso tempo da recente pandemia, que, por razões objetivas e subjetivas, nem conseguimos identificar muito bem quando foi, deixou marcas profundas em nossas vidas. A morte chegou pertinho de nós… Amigos e amigas se foram, gente conhecida querida sofreu muito. São muitas as faces e os nomes que nos vêm à mente, algumas com as quais convivemos, outras de pessoas famosas, hospitais cheios, tristeza, incertezas, medo! Assim, ecoa a belíssima e comovente canção “Sentinela”, de Milton Nascimento:

Longe, longe, ouço essa voz
Que o tempo não vai levar
Morte vela sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se vai
Revejo nessa hora tudo que ocorreu, memória não morrerá.

Todo este drama se deu, não somente no campo pessoal e familiar, mas, também na organização social da vida, nos esquemas de trabalho, na motivação para os estudos, no vai-e-vem cotidiano entre as fronteiras da casa e da rua. Também se deu na forma como os corpos se encontram, se abraçam e se beijam, ou, como é possível perceber, hoje deixam, consciente ou inconscientemente, de fazer tudo isto ou não o fazem intensamente como antes.

Naquela época, tudo parecia ainda mais desconcertante: desmontes na área da educação, na defesa e preservação do meio ambiente, deboche e descaso da morte de tantas pessoas pela covid-19, aumento dos conflitos nas famílias, devido ao incentivo do ódio político, discriminações e preconceitos. Muita gente triste, desolada e desencantada! Nem dava tempo e nem condição emocional havia de nos lembrarmos que “são felizes os que sofrem porque serão consolados” (Evangelho de Mateus, 5.4). A revolta e a indignação batiam mais forte.

E a vida seguiu com o seu ritmo inebriante. Novos tempos, aprendizados, expressões distintas de cotidiano e uma reorganização dos horizontes utópicos, com a doce e “estranha mania de ter fé na vida”, como na canção “Maria, Maria”, eternizada pelo Milton. São passagens, disrupções, ressignificações, buscas de sentido, caminhos…  

O psicanalista Hélio Pellegrino, cujos escritos marcaram a minha juventude, nos disse com maestria: 

Viver é, em última análise, lutar contra a morte. A luta contra a morte, por sua vez, significa integrá-la, segundo por segundo, ao movimento – à corrente – da vida. Começamos a morrer quando nascemos e, para muita gente, a morte marca o início de um novo nascimento. Seja como for, a morte nos trabalha, na mais íntima espessura do nosso ser, lâmina – ou semente – de silêncio absoluto, a pulsar dia e noite sua ausência infinita. (A burrice do demônio, 1989, p. 22). 

Em certo sentido, também aferimos essa delicada equação ao som de “Azul da cor do mar”, a inesquecível canção de Tim Maia:

Mas quem sofre sempre tem que procurar
Pelo menos vir a achar razão para viver
Ver na vida algum motivo pra sonhar
Ter um sonho todo azul, azul da cor do mar.

Creio ser oportuno ouvir esta voz, esta melodia, esta promessa porque tantas outras dores e lágrimas ainda vão se juntando no dia a dia de tanta gente: mulheres que não suportam mais o casamento, instabilidades no trabalho, memórias amargas de injustiças sofridas, limitações do corpo, amores não correspondidos, desilusões, solidão, desejos reprimidos, cargas pesadas que quase não se consegue levar.

E a fé, que é amiga da vida, e se junta à mesa da amizade, vai brilhando, alumiando, mostrando, com tons dissonantes, o que somos e o que podemos ser nas curvas sinuosas de nossa existência. Em um de seus sermões, o teólogo Paul Tillich nos alertara que “a salvação é uma criança que será crucificada quando crescer. Só os que conseguem ver poder na fraqueza, a totalidade nos fragmentos, a vitória no fracasso, a glória no sofrimento, a inocência na culpa, a santidade no pecado e a vida na morte poderão dizer: meus olhos viram a tua salvação”. Paradoxal! Deslumbrante! Fascinante! Inspirador!

Se reunirmos todas as experiências de empoderamento, mesmo as pequenas e engendradas no cotidiano, de luta política pela vida, de realizações pessoais no âmbito do trabalho, ou no campo das relações pessoais – novos amores, novas amizades, novas conquistas – no tom e no compasso da sensibilidade de Milton Nascimento, saberemos que são muitos os percalços, é verdade… 

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida

Assim, vamos misturando nossos desejos com aqueles que lampejam da vontade transcendente e divina, que segundo a fé cristã são semelhantes “a um tesouro oculto no campo, o qual certa pessoa, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo” (Evangelho de Mateus, 13.44).  E se, decididamente, arriscássemos a fazer isto? Buscando forças “sei lá de onde”, sendo dados aos sinais, aos avisos do tempo, à intuição que brota do peito, do fundo da alma, do mar de incompletude e desejos. Seria talvez como o ‘salto no escuro’, de Kierkegaard, a ‘razão desconhecida’, de Pascal, o ‘saber que se pode ir”, de Clarice Lispector, a ‘aposta apaixonada’, de Rubem Alves, a ‘caminhada para o alvo’, do apóstolo Paulo, a ‘força estranha’, de Caetano Veloso. Ah… Como é inquietante esta canção:

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha (no ar)
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha.

Passados esses tempos, estamos agora em outros. São distintos, fronteiriços, amargos e doces. Não se trata de enganarmos a nós mesmos com alegrias artificiais, esperanças vãs, promessas ilusórias. Trata-se de uma confissão e pedido sinceros, como as que fizeram morada no coração de Niltinho, autor da canção “tristeza”, que todos nós sabemos cantar e podemos também aprender a viver:

Tristeza, por favor vá embora
Minha alma que chora,
está vendo o seu fim.

Fez do meu coração a sua moradia
Já é demais o meu penar
Quero voltar àquela vida de alegria
Quero de novo cantar

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