O difícil e tenebroso tempo da recente pandemia, que, por razões objetivas e subjetivas, nem conseguimos identificar muito bem quando foi, deixou marcas profundas em nossas vidas. A morte chegou pertinho de nós… Amigos e amigas se foram, gente conhecida querida sofreu muito. São muitas as faces e os nomes que nos vêm à mente, algumas com as quais convivemos, outras de pessoas famosas, hospitais cheios, tristeza, incertezas, medo! Assim, ecoa a belíssima e comovente canção “Sentinela”, de Milton Nascimento:
Todo este drama se deu, não somente no campo pessoal e familiar, mas, também na organização social da vida, nos esquemas de trabalho, na motivação para os estudos, no vai-e-vem cotidiano entre as fronteiras da casa e da rua. Também se deu na forma como os corpos se encontram, se abraçam e se beijam, ou, como é possível perceber, hoje deixam, consciente ou inconscientemente, de fazer tudo isto ou não o fazem intensamente como antes.
Naquela época, tudo parecia ainda mais desconcertante: desmontes na área da educação, na defesa e preservação do meio ambiente, deboche e descaso da morte de tantas pessoas pela covid-19, aumento dos conflitos nas famílias, devido ao incentivo do ódio político, discriminações e preconceitos. Muita gente triste, desolada e desencantada! Nem dava tempo e nem condição emocional havia de nos lembrarmos que “são felizes os que sofrem porque serão consolados” (Evangelho de Mateus, 5.4). A revolta e a indignação batiam mais forte.
E a vida seguiu com o seu ritmo inebriante. Novos tempos, aprendizados, expressões distintas de cotidiano e uma reorganização dos horizontes utópicos, com a doce e “estranha mania de ter fé na vida”, como na canção “Maria, Maria”, eternizada pelo Milton. São passagens, disrupções, ressignificações, buscas de sentido, caminhos…
O psicanalista Hélio Pellegrino, cujos escritos marcaram a minha juventude, nos disse com maestria:
Em certo sentido, também aferimos essa delicada equação ao som de “Azul da cor do mar”, a inesquecível canção de Tim Maia:
Creio ser oportuno ouvir esta voz, esta melodia, esta promessa porque tantas outras dores e lágrimas ainda vão se juntando no dia a dia de tanta gente: mulheres que não suportam mais o casamento, instabilidades no trabalho, memórias amargas de injustiças sofridas, limitações do corpo, amores não correspondidos, desilusões, solidão, desejos reprimidos, cargas pesadas que quase não se consegue levar.
E a fé, que é amiga da vida, e se junta à mesa da amizade, vai brilhando, alumiando, mostrando, com tons dissonantes, o que somos e o que podemos ser nas curvas sinuosas de nossa existência. Em um de seus sermões, o teólogo Paul Tillich nos alertara que “a salvação é uma criança que será crucificada quando crescer. Só os que conseguem ver poder na fraqueza, a totalidade nos fragmentos, a vitória no fracasso, a glória no sofrimento, a inocência na culpa, a santidade no pecado e a vida na morte poderão dizer: meus olhos viram a tua salvação”. Paradoxal! Deslumbrante! Fascinante! Inspirador!
Se reunirmos todas as experiências de empoderamento, mesmo as pequenas e engendradas no cotidiano, de luta política pela vida, de realizações pessoais no âmbito do trabalho, ou no campo das relações pessoais – novos amores, novas amizades, novas conquistas – no tom e no compasso da sensibilidade de Milton Nascimento, saberemos que são muitos os percalços, é verdade…
Assim, vamos misturando nossos desejos com aqueles que lampejam da vontade transcendente e divina, que segundo a fé cristã são semelhantes “a um tesouro oculto no campo, o qual certa pessoa, tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e compra aquele campo” (Evangelho de Mateus, 13.44). E se, decididamente, arriscássemos a fazer isto? Buscando forças “sei lá de onde”, sendo dados aos sinais, aos avisos do tempo, à intuição que brota do peito, do fundo da alma, do mar de incompletude e desejos. Seria talvez como o ‘salto no escuro’, de Kierkegaard, a ‘razão desconhecida’, de Pascal, o ‘saber que se pode ir”, de Clarice Lispector, a ‘aposta apaixonada’, de Rubem Alves, a ‘caminhada para o alvo’, do apóstolo Paulo, a ‘força estranha’, de Caetano Veloso. Ah… Como é inquietante esta canção:
Passados esses tempos, estamos agora em outros. São distintos, fronteiriços, amargos e doces. Não se trata de enganarmos a nós mesmos com alegrias artificiais, esperanças vãs, promessas ilusórias. Trata-se de uma confissão e pedido sinceros, como as que fizeram morada no coração de Niltinho, autor da canção “tristeza”, que todos nós sabemos cantar e podemos também aprender a viver: