Por Gleicy Schommer dos Santos*
“A escola pública é muito ruim! De péssima qualidade. A escola particular seria o contrário disso”. Esse discurso é bastante frequente. Mas a escola pública é mesmo tão ruim assim? E a escola privada é mesmo tão boa assim?
“A escola pública é muito ruim! De péssima qualidade. Quase ninguém consegue se dar bem no Enem. A diferença entre a pública e a privada é muito grande. ” Esse discurso é bastante frequente. Mas, vejamos, a escola pública é mesmo tão ruim assim? E a escola privada é mesmo tão boa assim?
Sempre ouvimos falar que a escola pública é ruim, que é horrível, que é péssima. Que os alunos não são interessados, que os professores são péssimos, etc. Claro, o padrão de qualidade é a escola privada. Aquela, equipada, estruturada e com professores “top”. De certo que, ar-condicionado, paredes pintadas, café, almoço, livros, uniforme limpo e bem passado, mochila cheia, barriga cheia, tudo isso faz uma enorme diferença e são pontos relevantes na escola privada. Todo o equipamento que falta na escola pública, existe ou sobra na escola privada; toda condição material que os alunos da escola privada têm, muitas vezes é o maior problema da escola pública.
No entanto, as escolas privadas filiadas à grupos financeiros – que são grande maioria hoje no Brasil, seja como unidade constitutiva do sistema de ensino, seja as escolas que compram um sistema de ensino – têm seus materiais didáticos previamente selecionados pelo grupo. Assim, os principais critérios nessa escolha são a marca, as editoras que estão filiadas à rede de empresas e grupos financeiros que administram também a própria instituição escolar; ou no caso das escolas que compram um sistema de ensino, os livros a serem utilizados já estão muitas vezes automaticamente escolhidos. Isto significa que os professores da rede privada não têm autonomia alguma sobre a escolha do material, pelos critérios que lhe interessa: conteúdo e didática. Por exemplo: existe um grupo financeiro X, que é dono de três editoras, sete sistemas de ensino, quatro sistemas de softwares e cinquenta unidades escolares. Essas 50 escolas só poderão utilizar os livros de uma das 3 editoras, que editem um dos 7 sistemas de ensino do grupo. Enfim, trata-se de um mercado da educação, que envolve escolas, rede de escolas, modelos de gestão administrativa e pedagógica, e a reboque, o material didático. Enquanto que nas escolas públicas, desde 2010, com o PNLD – Programa Nacional do Livro Didático, o Ministério da Educação disponibiliza uma variada gama de livros didáticos para toda a rede pública do país. Além disso, são os professores que escolhem os livros que usarão, e não a administração da escola, como no ensino privado.
O trabalhador de linha de frente dessa produção chamada Educação, é o professor. E assim como qualquer processo produtivo, precisa atender um perfil traçado pela empresa. As exigências para contratação são semelhantes a qualquer outro ramo empresarial/administrativo. Normalmente, os salários são maiores e as condições de trabalho são também melhores no setor privado. Então, é a excelência do professorado da rede privada que faz a principal diferença entre as escolas públicas e particulares? De fato, a situação do professor do ensino básico na rede pública é lamentável. Sobretudo nos estados e em muitos municípios Brasil adentro. Temos hoje um quadro em que, a quantidade de professores efetivos não chega à metade do total, pois a grande maioria trabalha em regimes de contratação, que é ainda mais caótico e precário, visto que cada município e cada estado “faz o que pode e como pode”.
Enfim, podemos observar que, de fato, a infraestrutura e a estrutura, as condições de trabalho e salário dos professores, podem mesmo possibilitar, de maneira muito mais eficiente, melhores resultados. Mas isso é suficiente para dizer que a escola privada é melhor que a pública, de modo generalizado? Talvez seja preciso repensar algumas qualificações que são tomadas rapidamente como evidentes.
O ensino médio, por exemplo, fase em que o foco são os exames de vestibular e o Enem. No grande mercado da educação e do vestibular, os professores preparadores são disputadíssimos no mercado, só os “top” dão aula para o 3º ano e nos cursinhos. Então, o que um professor precisa fazer para ser “top”? Primeiro ele precisa ser simpático, ser “legalzão” e amigo da galera. Precisa estar atento aos temas cobrados em tais exames dentro de suas disciplinas. Precisa também saber como “desenhar” e “mastigar” o assunto para os adolescentes, afinal, com tantos assuntos para enfiar na cabeça, não há tempo para leitura e reflexão. Assim, musiquinhas, vídeos, mapas mentais, são estratégias utilizadas pelos professores “top” para ajudar o aluno a memorizar o assunto. Ele precisa também, assim como qualquer trabalhador contemporâneo, vestir a camisa da empresa.
A gestão no ensino privado assume a forma empresarial, sem culpa ou ressentimentos, afinal, a educação é um ótimo negócio. O mercado do vestibular é altamente lucrativo. O aluno que entra bem colocado nas melhores universidades do país é propaganda para a escola, gera mais lucro para a empresa. E o professor do ensino médio tem papel fundamental nesse processo. Ele deve também, gerenciar sua sala de aula e administrar sua prática docente e suas relações. É o professor empreendedor. Dominar o assunto de forma mais completa e aprofundada, fazer pesquisas, despertar a curiosidade e capacidade de reflexão dos alunos é secundário para ser um professor top.
O paradoxo desse negócio chamado educação é que, o cliente é também parte do processo de produção e o próprio produto final!
Esta sim talvez seja a maior diferença entre a escola pública e a privada. Na escola pública, o aluno não é cliente. O aluno, sua família e a comunidade são também donos da escola, junto à direção, coordenação e professores. O governo não é dono da escola pública. E o professor, somente na instituição pública, pode ser autônomo em seu trabalho, pois este é um tipo de trabalho que exige autonomia, pois não há produto final. E se não há produto final, não há padrão de qualidade a ser seguido, nem código de barras para rastrear o produto, nem inspeção do setor de qualidade para verificação de tais padrões – isso cabe à fábrica, aos processos de produção, não à educação. O produto final da escola pública é o cidadão, é o ser social, que pode e deve ingressar na universidade, que também é pública, sem que para isso tenha que pagar fortunas e ainda fazer a propaganda da marca gratuitamente.
A escola funciona como uma experiência de sociedade em miniatura, em que as estruturas e externas se encontram também em seu interior. Sendo ela a principal instituição de educação das sociedades modernas, tem como função garantir uma socialização metódica das novas gerações. Como sugere o filósofo norte-americano John Dewey, a escola deveria promover a democracia no interior da própria instituição. No entanto, quando se trata de uma instituição privada, cujo interesse maior é financeiro, os interesses da comunidade, do público e a ética democrática fica em segundo, ou até, em último plano.
Apenas na escola pública e na universidade pública é que é possível pensar os interesses comuns, do público. Apenas na escola pública é possível a experiência que Dewey sugere, de compreender e participar da política, da democracia, enfim, da vida em sociedade. Como sugere ainda o mesmo filósofo, a escola deveria proporcionar experiência educacional capaz de recusar todas as formas de totalitarismo e despertar a curiosidade necessária ao pensamento reflexivo. O que certamente, só é possível no ensino público.
É preciso refletir os conceitos de qualidade educacional. Pois não é possível que esse sistema e tais padrões empresariais agradem alguém que não seja os próprios empresários que lucram com tal negócio. É possível notar que, os mais interessados, que são os próprios alunos, a eles tampouco agrada esse sistema fabril de educação. Eles mesmos se sentem, como já ouvi certa feita, “códigos de barras”, ou até mesmo em uma cadeia de produção de avaliações e resultados. Muitos se sentem extremamente estressados, cansados, pressionados. E se eles não entrarem no ritmo que a escola impõe, automaticamente são diagnosticados com algum déficit ou são geniais demais para os padrões.
Quanto mais acessível for uma escola, mais plural e heterogênea ela será. Assim, a experiência democrática será tão mais efetiva. Quanto mais seletiva, ou restrita a certas camadas sociais, menos democrática, menos plural ela será. E essa lógica se reproduz e é reproduzida na e pela sociedade.
A criança que cresce em meio à diversidade e experiências heterogêneas, terá, certamente, uma maior percepção da realidade. Quando se cresce e só se convive com iguais, “protegido” pelos muros do condomínio e pelas cercas e catracas da escola, menor será sua percepção da realidade.
Para aprimorar a democracia e melhor viver em sociedade – junto com o “outro”, e não apenas o tolerando, numa atitude de indulgência – é preciso conhecer um pouco do outro e ser capaz de sensibilizar-se ao sofrimento alheio e à injustiça! E essa educação, somente a escola pública pode oferecer.
Não! A escola privada definitivamente não é melhor que a pública!
Gleicy Schommer dos Santos é professora no ensino médio e superior. Socióloga, na área de Sociologia da Educação. Apaixonada por Educação e defensora do ensino público.
Obs. Publicado incialmente em PontoCrítico em 31 de agosto de 2017.