Lutar por direitos sociais é coisa de “marxista”?

Por Adalton Marques*

 

O texto se opõe à estratégia corriqueira de deslegitimar as lutas contra as reformas em curso através de categorias acusatórias como “ideológico”, “socialista” e “marxista”. Essas acusações, no mais das vezes, decorrem de um profundo desconhecimento histórico e teórico.

Recentemente, um conhecido do Vale do São Francisco disse-me, em conversa corriqueira, que sindicatos de trabalhadores e muitos docentes de universidades da região são “ideológicos”, “socialistas” e “marxistas” por se colocarem contra as reformas em curso do atual governo. Sua esperança, segundo me disse, é que essas reformas sejam continuadas e intensificadas num futuro governo de Bolsonaro (o mesmo pré-candidato que, até dois meses atrás, defendia um governo intervencionista, planejador e capaz de repetir o “Milagre econômico” brasileiro, à maneira dos governos militares de 1964-84!).

Evidentemente tentei contraditar sua perspectiva. Ainda acho que é preciso dialogar, discutir pontos de vista, convencer uns aos outros, ou seja, fazer política (para o arrepio de quem defende as ideias do “Escola sem Partido”).

Pensei, então, em escrever estas poucas linhas para tentar “desenhar” a relativa descontinuidade entre essas pautas trabalhistas e as lutas marxistas (se é que dá para unificar um fenômeno que dura mais de um século, que se expandiu por todo o mundo e que produz efeitos múltiplos e divergentes entre si!). Evidentemente isso não significa que um(a) marxista não possa aderir a essas lutas! Estrategicamente, penso eu, deve fazê-lo. Todavia, e este é o ponto, essas lutas são, antes de tudo, legalistas e liberais!

Para isso, talvez seja preciso fazer alguns rabiscos (simples e grosseiros) “históricos” para explicar porque este mundo em que vivemos, prestes a desaparecer, não surgiu na URSS, nem na China, nem em Cuba! Mais que isso, não surgiu como uma estrela cadente e nem está desaparecendo por ação de forças extrínsecas a cada um de nós.

Esse mundo em que vivemos (liberal, diga-se de passagem), surgiu após o “crash” da Bolsa de Valores de Nova York, no final de outubro de 1929. Era o fim de uma era em que os economistas liberais acreditavam que era possível deixar tudo nas mãos do Mercado, supondo que uma força misteriosa, a que se tinha dado o nome de Lei da Oferta e da Procura, era suficiente para regular as relações de compra e venda e distribuir a “felicidade” de uma maneira mais eficiente do que o faria o Estado. Foi essa ideia, segundo o diagnóstico dos próprios liberais da época, que levou ao colapso da economia mundial.

Como a Revolução Russa de 1917 estava “fresquinha”, e a então URSS vivendo um estupendo e vertiginoso crescimento econômico, supunha-se que as propostas socialistas ganhariam terreno no Ocidente. É nesse cenário de “incertezas” que as teorias econômicas de um liberal britânico chamado John M. Keynes (1883-1946) ganharam terreno como alternativa ao “velho liberalismo”.

A política econômica proposta por esse liberal defendia, basicamente, que os governos deveriam usar medidas fiscais e monetárias para atenuar (mitigar) os efeitos adversos (recessões causadas por vários motivos) provocados, ciclicamente, pelo Mercado. Foi essa tese, acolhida pela maioria dos países capitalistas (EUA, Inglaterra, Alemanha, França etc.), que permitiu a reconstrução das economias após as guerras mundiais.

E foi nesse “mundo keynesiano” (liberal) que se consolidou o acordo trabalhista que regulou as nossas vidas desde que nascemos e que está próximo de desaparecer: a ideia de que era necessário e produtivo (ou seja, propiciava bons efeitos econômicos) construir uma poupança coletiva (chamada previdência), por meio da arrecadação de parte dos ganhos dos trabalhadores e parte dos ganhos dos empregadores, para prevenir os três grandes riscos a que qualquer pessoa está sujeita: desemprego, doença e velhice.

Esse novo acordo trabalhista (liberal, reafirmo) fez parte de uma grande estratégia econômico-política, capaz de produzir efeitos, a médio e longo prazo, de salvação do capitalismo agonizante. Na prática, para milhares de trabalhadores (mas não todos, porque esse modelo não se universalizou) isso significou segurança social e econômica coletiva, bem diferente do que era o velho lema liberal: “cada um por si e o Mercado contra quase todos”. Previdência, uma rápida busca em dicionários informa, significa cautela antecipada, prevenção, precaução.

É muito simples notar como o keynesianismo é completamente diferente do projeto marxista de socialização dos meios de produção, pois, embora tenha providenciado uma parca transferência de riquezas dos capitalistas para os trabalhadores, por meio dos impostos que construíram as contas previdenciárias, nenhuma palavra diz contra a propriedade privada, contra as heranças, contra a existência do Mercado! Ademais, repito, o estado de bem-estar social (coberto pelas contas previdenciárias) existiu em poucos países do Norte e, de maneira reduzida, para poucos trabalhadores dos países do Sul.

Por isso, caras(os) leitoras(es), a oposição às atuais reformas propostas pelo governo golpista de Temer não é “papo” de “socialista” ou “marxista”. Essa associação decorre de um profundo desconhecimento histórico e teórico. Ignorância histórica, repito, porque os direitos sociais (trabalhistas e previdenciários) ganharam sua generalidade e atual forma no interior de governos que seguiram de perto as ideias de Keynes, ou seja, não são direitos a que se possa chamar propriamente de socialistas. Ignorância teórica porque os espantalhos “marxista” e “socialista”, utilizado aqui e ali com frouxidão espantosa, passam ao largo dos textos escritos por Karl Marx (1818-1883) e por teóricos marxistas.

A oposição ao fim da CLT, à reforma da Previdência, ao teto dos gastos públicos, às privatizações em curso, ao fim das Universidades Públicas etc. é, no máximo, a tentativa de assegurar um liberalismo menos cruel do que esse que vem com força. E, quem sabe, num melhor momento, expandir um pouco mais o número de cobertos pelas contas previdenciárias.

Mas, para isso, os empregadores têm de ser obrigados por lei (por que eles nunca vão aceitar de boa vontade!) a pagar parte dessa poupança coletiva, em vez de pagar míseros R$ 4,5 (quatro reais e cinquenta centavos!) pela hora de trabalho de pobres mulheres e homens para as/os quais o presente não reserva alternativa. É isso que, nas últimas duas semanas, os grandes veículos de comunicação e o governo, porta-vozes do grande empresariado que atua neste país, querem chamar de redução do desemprego: a “entrada” de milhares de mulheres e homens num mercado de trabalho que lhes paga menos do que o mínimo necessário para tocarem suas vidas (nem falemos das vidas daqueles que dependem de seu “salário”).

Último ponto: além de liberal, Keynes era funcionário público.

Saudações de um trabalhador.

* Adalton Marques é antropólogo, professor do Colegiado de Ciências Sociais da UNIVASF, membro do KRISIS – Laboratório de Antropologia, Filosofia e Política e filiado à SINDUNIVASF – Seção Sindical dos Docentes da UNIVASF.

Obs. Publicado inicialmente no PontoCrítico em 4 de dezembro de 2017.

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