“Marighella: no meio do caminho há uma pedra”, por Daniel de Moura

Texto para ser lido ao som da música “Sentinela” – Milton Nascimento/ Nana Caymmi

“Para, para!”

Foi o grito ecoado na Alameda Casa Branca em São Paulo pelo delegado Sergio Fernando Fleury, no dia 04 de novembro de 1969, na altura do número 800, onde estacionava como de costume o fusca dos frades.

As ruas estavam vazias, televisionavam naquele dia o Santos de Pelé contra o Corinthians de Rivelino no estádio do Pacaembu e segundo o jornalista Mario Magalhães, biógrafo de Marighella, pouco depois das oito horas, um mulato baiano despontou na calçada para se despedir da vida. Marighella resolveu que não voltaria para a prisão. Já dentro do fusca e cercado pela polícia, tentou pegar dentro da sua mala a capsula com veneno cianureto que carregava e diante dos movimentos bruscos, atiraram nele.

Hoje, no endereço do ocorrido, encontra-se uma pedra que marca o lugar da sua morte. Marighella é oficialmente anistiado político post mortem. A declaração está na Portaria 2.780 publicada no Diário Oficial da União em 2012, época do Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso. Antes da anistia política, quando Fernando Henrique Cardoso era presidente da República, o Estado reconheceu que foi responsável pela sua morte.

Baiano, professor, deputado federal, concordando ou não com seus ideais a verdade que fica é que após ler a biografia de Mario Magalhães, Cecil Borer, diretor do Dops, tinha razão: “Cuidado, que o Marighella é valente”.

Marighella é lembrado até hoje. Por Caetano Veloso, na canção Um Comunista, reverenciando em nome do samba o mulato baiano, mas alerta: “muito embora não creia em violência e guerrilha”. Mano Brown com os Racionais rimou versos em sua homenagem: “essa noite em São Paulo um anjo vai morrer/ por mim, por você, por ter coragem em dizer”. Frei Betto escreveu o Batismo de Sangue, livro vencedor do prêmio Jabuti, o qual detalha a resistência à ditadura e o envolvimento dos frades dominicanos com a ALN – Ação Libertadora Nacional, que resultou na morte de Marighella.

Os dominicanos frei Betto, frei Tito, frei Giorgio e frei Maurício, foram presos em São Paulo pela polícia que tinha o objetivo de encontrar Marighella e, antes do assassinato, foram levados ao DEOPS/SP, departamento de ordem política e social, que fica no Largo General Osório, 66 – Santa Ifigênia. O prédio que hoje funciona o Memorial da Resistência de São Paulo, foi arquitetado por Ramos de Azevedo, o mesmo que projetou o Teatro Municipal de São Paulo. Antes de ser a sede do DEOPS, funcionava o armazém central da estrada de ferro Sorocabana, construída em 1914.

Frei Fernando e frey Ivo, foram presos no Rio de Janeiro na mesma época e depois transferidos para São Paulo. Sendo torturados pela ditadura, deram informações que levaram a polícia até o guerrilheiro comunista. Assim como Pedro e Judas na Bíblia, frei Fernando ficou atormentado pela culpa: traiu seu paladino e preso pelo sistema, foi acusado de subversivo. Até mesmo um homem de fé, dependendo da dor, é possível duvidar.

Talvez inspirado na antiga tradição de mandar bilhetes dentro de garrafa no mar iniciada pelo aluno de Aristóteles, Theophrastus, que enviou uma carta dentro de uma garrafa para provar que o Oceano Atlântico desaguava no Mar mediterrâneo, frei Fernando escreveu durante os quatro anos em que esteve preso bilhetes que eram colocados dentro de canetas Bic, os quais eram levados fora da prisão pelos visitantes. Frei Beto organizou esses bilhetinhos e transformou em livro publicado no ano de 2009: O Diário de Fernando (Ed. Roco).

Durante o cárcere, frei Fernando foi visitado por vários bispos importantes: Dom Paulo Evaristo Arns (autor do livro Brasil: Nunca mais), Dom Tomás Balduíno, Dom José Maria Pires, Dom Antônio Fragoso dentre outros. Solto em outubro de 1973, o mineiro buscou uma vida rural, nos deixando em março de 2019, vítima de câncer.

Muitos dirigentes de movimentos católicos se tornaram oposição ao regime militar daquela época. Em um país violento, o alento se notava na igreja do bairro de Perdizes. Franz Heep, arquiteto alemão que projetou o edifício Itália no bairro República, foi contratado para a construção da igreja São Domingos, complexo dos dominicanos que também funcionava como convento. Era um período em que os cantos de louvor e a homilia permitiam a esperança de paz. O regime autoritário nomeava Generais para todas as instituições menos para a igreja, o que vale ressaltar a participação da cristandade em resistências na França contra os nazistas e na Itália, contra Benito Mussolini.

Diante de tantos acontecimentos, lutas, histórias e divergências, a igreja, casa da fé, serviu e ainda pode servir de complemento aos defeitos dos sentidos.

Referência

MAGALHÃES, Mário. “Mariguella, o guerrilheiro que incendiou o mundo” – Editora Companhia das Letras.

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