Quero argumentar aqui que a ideologia da família tradicional brasileira é significativamente representada por Jair Bolsonaro. Mas quero também instigar o questionamento se é realmente esse modelo de família que queremos conservar, uma vez que é comum encontrarmos pessoas proclamando a defesa da família em eventos e redes sociais. Mas não basta ter boas intenções, é preciso entender o que está em jogo quando lutamos por algo. O conhecido slogan (“Deus, Pátria, Família”) é repetido em diversas manifestações públicas como forma de se opor àqueles que são vistos como destruidores desses três eixos estruturantes da moralidade cristã ocidental. Quero destacar o fulcro família nesse texto. Em outro artigo, Mizael Pinto de Souza propôs uma compreensão teológico-exegética do sentido de família nos escritos sagrados do cristianismo, e vale a pena conferir.
A proposta aqui é seguir um caminho complementar e pensar mais detidamente a dimensão tradicional brasileira dessa alardeada família. E é preciso constatar desde o início que essa família se acha vinculada diretamente ao modelo patriarcal colonial com seu sadismo, masoquismo, personalismo, paternalismo e mandonismo. Essa ideia de família é modeladora de um pretenso padrão de normalidade. Nela, o homem pode tudo. Por isso mesmo, essa família é marcada por atividades extraconjugais e violência doméstica. Na família tradicional colonial, muitos homens mantinham relação sexual conjugal apenas para a procriação, enquanto o prazer era buscado com as mulheres negras escravizadas, como tratou, por exemplo, Gilberto Freyre no clássico Casa-grande & senzala. Historicamente, as amantes e os filhos bastardos participavam do funcionamento estendido dessa tradicional família brasileira. Bem conveniente e vantajoso para alguns homens defender esse tipo de família, não?
Urge ainda dizer que parte fundamental da hipocrisia dessa família tradicional, desde seus começos, é o que decorre das traições realizadas pelos homens: muitas mulheres se sentem culpadas pela infidelidade do marido, como se elas estivessem em dívida com seus esposos, o que justificaria o adultério. Além disso, a mulher nunca pode trair. O julgamento social sobre um homem adúltero é bem diferente do juízo sobre uma mulher que comete o ato. Para um homem é apenas um deslize, enquanto para a mulher, motivo de extrema vergonha. Toda a luta para mudar esse quadro preconceituoso é vista como um perigo à machista tradicional família brasileira.
Com relação à violência no âmbito do lar, a família tradicional é uma realidade cruel e uma ideologia perversa para muitas mulheres e crianças. A famigerada família tradicional pode escamotear traição e violência. Uma pesquisa de opinião recente, “Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher – 2021”, realizada pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, constatou que a maioria das mulheres brasileiras (86%) percebeu um aumento na violência cometida contra pessoas do sexo feminino durante o último ano (cf. informação). A violência contra as crianças implica em maus-tratos, negligências, abandonos e abusos, muitas vezes mascarando uma ideia violenta de educação.
Vejamos como Jair Bolsonaro representa significativamente um modelo tradicional de família brasileira. Essa família branca, heterossexual e cristã se orgulha de ser racista (“seria uma promiscuidade um filho meu se apaixonasse por uma negra”), homofóbica (“Não posso admitir abrir a porta do meu apartamento e topar com um casal gay se despedindo com beijo na boca”), violenta (“se pegasse um filho fumando maconha, o torturaria”), elitista (“eu não entraria em um avião pilotado por um cotista nem aceitaria ser operado por um médico cotista”), machista (“eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens; a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”) e cruel (“prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”). Todas as expressões entre aspas foram proferidas por Bolsonaro e estão facilmente disponíveis nos meios virtuais.
Em 14 de fevereiro de 2000 foi publicada a entrevista “Eu defendo a tortura” com o então deputado Jair Bolsonaro à jornalista Claudia Carneiro da revista IstoÉ Gente número 28. Ao ser perguntado pela repórter: “E sobre a legalização do aborto?”. Ele responde: “Tem de ser uma decisão do casal”. E ela continua: “O senhor já viveu tal situação?”. Ao que ele diz: “Já. Passei para a companheira. E a decisão dela foi manter. Está ali, ó”. Nesse momento ele aponta para a foto de seu filho mais novo com Ana Cristina Valle, sua segunda esposa. Além de defender que o aborto é uma decisão do casal, algo inconcebível pela pauta moral que o acompanha atualmente, a questão que importa lembrar é que Renan foi concebido quando Bolsonaro e Ana Cristina ainda estavam casados com outras pessoas. Esse modelo de família tradicional representado por Bolsonaro é marcado por sugestão de aborto (uma pauta que se perdeu), adultério (um assunto evitado) e recasamentos com esposas cada vez mais novas (um oportunismo conveniente), o que lhe garantiu a honraria de três casamentos: sendo, três filhos com a primeira esposa, um filho com a segunda e uma filha e uma enteada com a terceira e atual companheira, Michelle.
Quando você defende a família tradicional, talvez em sua concepção esteja outro modelo de família que não pode ser representado por Bolsonaro. Talvez você esteja pensando num casal unido pelo contrato matrimonial e pela geração de filhos, sendo ainda uma família abençoada pela fidelidade e infinitude. Mas essa ideia normativa de família raramente acontece de fato, como o próprio Bolsonaro exemplifica. E nesse ponto ele está bem longe da família tradicional brasileira. Os seus sucessivos recasamentos estão na média nacional, onde os casamentos duram em torno de 13 anos, bem antes que a morte os separe. E, por isso mesmo, há muitas famílias reconstruídas por pessoas que se divorciaram e refizeram família, como é o caso do próprio Bolsonaro. Por esses e outros motivos, existem famílias que são compostas das mais diversas formas, bem além daquela eterna família nuclear normativa. Se é possível defender essa família nuclear ideada ou reconstituída, porque não aceitar também as outras formas de família? Temos arranjos monoparentais, homoparentais, anaparentais etc. Há tantas maravilhosas disposições reais de família que contemplam formações com filhos biológicos ou adotivos, tendo pais e filhos em diversas combinações hetero e homoafetivas. Por isso mesmo, a família tradicional brasileira é um engodo opressor das outras tantas possibilidades. Existem múltiplas formas de se fazer família. Mas há um elemento que impede a aceitação principalmente de uma forma de família: o preconceito.
Voltando à entrevista de Bolsonaro, outro ponto a destacar é o que ele entende como realmente desestabilizador da família tradicional brasileira: a homossexualidade; não seria a traição ou a violência? Enfim, indaga-lhe a repórter: “O que pensa sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo?”. E a sua resposta: “Eu sou contra. Não posso admitir abrir a porta do meu apartamento e topar com um casal gay se despedindo com beijo na boca, e meu filho assistindo a isso”. E a entrevistadora continua: “Tem algum homossexual na família?”. Ele prontamente diz: “Graças a Deus, não. Eu desconheço. Se tivesse, nem quero pensar”. E a entrevistadora avança: “E como o senhor trata da liberação sexual com seus filhos?”. Bolsonaro diz: “Certas coisas não se pode ser contra ou a favor. Prefiro que um filho meu leve uma namoradinha para dentro de minha casa, num dia que eu não esteja lá, do que ele ser rendido na rua e assassinado dentro de um carro”.
No limite, essa obsessão contra as minorais se torna a diretriz para distinguir o aceitável daquilo que deve ser recusado a qualquer custo. A indignação maior de muitos defensores morais da tradicional família brasileira não são os filhos abandonados, o racismo explícito, o machismo opressor, os casamentos de fachada, as traições recorrentes, o preconceito destruidor, a violência doméstica etc. Eles não pavoneiam essas pautas imprescindíveis como deveriam, pois revelaria a mentira que vivem. Para eles, o problema mesmo são as pessoas que se amam e querem constituir família independente do gênero. Se não houver amor, diga-se de passagem, a própria família tradicional brasileira mantém justamente a tradição de ser apenas um embuste ideológico calcado numa moral debilitada e arrogante que procura se impor a qualquer custo, justamente a fim de dissimular sua hipocrisia e fragilidade. Chico Buarque foi muito feliz ao descrever o casamento que funda a tradicional família brasileira. Eles juram amor eterno, mas só estão na mesma casa esperando que algo aconteça para a separação. E querem que a sua infelicidade sirva de critério para que outras famílias não possam ser e existir.
Nota sobre a imagem de destaque.
Fonte: Henrique Kipper, “Família tradicional brasileira”, 2016. Disponível em: https://revistaforum.com.br/u/fotografias/m/2016/6/1/f804x452-15626_67559_0.jpg. Acesso em: 15 out 2022.