Um fenômeno religioso surgiu recentemente em nossas terras: chamo-lhe “baalsonarismo”. Mas como nada é absolutamente novo, o próprio nome dessa recém-instaurada religião reverbera desafios antigos da tradição semítica. O nome de Baal é associado à idolatria, o que se opõe à adoração a Yahweh (pode-se conferir Juízes 2.13). Baal pertence ao panteão cananeu e é considerado deus da fecundidade (“imbrochável”) e da guerra (“armamentista”). Baal significa “marido”, “senhor”, “proprietário”, “dono”. Uma importante pesquisa sobre Baal e outras divindades ancestrais foi realizada por Rogério de Moura e vale conferir (link). Em relação ao conjunto de divindades primitivas, Baal era visto como um dos mais destacados contrapontos a Yahweh. Os israelitas tinham uma propensão de venerar as duas divindades simultaneamente. E o papel dos juízes e profetas era trazê-los de volta à adoração ao único e verdadeiro Deus, pois Yahweh não divide sua glória com os falsos deuses pagãos. E não se pode servir a dois senhores.
Um acontecimento em particular pode ser recuperado para elucidar a oposição entre Yahweh e Baal. Trata-se da famosa narrativa do confronto entre Elias e os quatrocentos e cinquenta profetas de Baal (I Reis 18.21-40). Vou descrever a cena de forma breve. Elias pergunta ao povo até quando eles hesitariam entre dois pensamentos. O desafio lançado pelo profeta de Yahweh é que eles deveriam escolher a quem venerar: e apenas o Deus verdadeiro deveria ser seguido. Para demonstrar a legítima divindade, Elias convoca os profetas de Baal a prepararem um boi para sacrifício. Uma vez cortado em pedaços e colocado sobre a lenha, eles não deveriam colocar fogo, mas apenas fazer orações. Elias faria o mesmo com outro boi. Cada um invocaria sua divindade, e aquela que respondesse com fogo seria considerada autêntica. Assim ocorreu: os devotos de Baal clamaram desde a manhã até ao meio-dia, mas nada aconteceu. Nenhuma voz os respondeu. Nenhum sinal foi dado. Elias então zombou deles dizendo que deveriam gritar mais alto, pois Baal poderia estar conversando com alguém, ou com outras ocupações, ou até mesmo dormindo. Eles então se desesperaram e começaram a se cortar e gritar cada vez mais alto. Mas ninguém reagiu a eles. Elias então assume o ritual e organiza o altar com doze pedras. Fez ainda um sulco ao redor do altar, colocando a lenha e cortando o boi. Ele pediu ainda que fosse despejada bastante água sobre o holocausto e sobre a lenha. A seguir, Elias fez sua prece: “Senhor Deus de Abraão, de Isaque, e de Israel, seja hoje manifesto que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo, e que por mandado teu fiz todas estas coisas. Responde-me, Senhor, responde-me; para que conheça este povo que tu, ó Senhor, és o Deus, e que tu voltaste atrás o coração deles”. Em seguida, caiu fogo divino que consumiu o sacrifício, a lenha, a pedra, o pó e a água. O povo presente então admitiu: “o Senhor é Deus”. Elias a seguir pediu que todos os profetas de Baal fossem presos e degolados. Essa polêmica sinaliza a busca por uma identidade israelita frente às influências e aglutinações culturais e cultuais estrangeiras. Temos aí a busca israelita de se firmar como um povo que tem uma única deidade real em oposição aos falsos deuses dos povos vizinhos.
Em nossos dias, há um novo Baal venerado em diversos templos cristãos. Os profetas de Baal (com nomenclatura cristã: pastores, apóstolos, bispos etc.) estão em diversas igrejas promovendo idolatria a um homem, um indivíduo que é sacralizado como messiânico. Inicialmente tido como enviado, ungido, salvador, escolhido etc., sua veneração foi se descolando desse tratamento como abençoado por Deus. As coisas estão mudando: no limite, em muitos encontros evangélicos, ele ocupa o lugar ritualístico da própria divindade cristã. É realmente como se estivéssemos diante de uma outra religião: o baalsonarismo. Não se trata mais de uma questão de religião e política, ou apenas isso.
Esse culto tem uma origem social, pois se alimenta da confluência entre o personalismo e o autoritarismo, que são parte das “raízes do Brasil”. O culto à pessoa e à cultura do mando são mobilizados como parte emblemática do imaginário brasileiro. Em linhas gerais, o personalismo se exprime na devoção a uma pessoa, tendo em vista a sua valorização e exaltação. Assim, a religião baalsonarista eleva esse personalismo a um nível sacro, divinizado, cultuado. Vejamos como isso funciona.
Quando o novo Baal chega a um culto a Deus, há diversos registros de fiéis gritando seu nome ou seu cognome: “Mito, Mito, Mito”. O êxtase de sua presença é perceptível por essa efervescência coletiva que torna possível substituir a adoração tradicional por um novo culto ali mesmo, no templo cristão. Todos ficam em pé e vibram euforicamente porque o ídolo está presente. Pasmem, já existem até cânticos de louvor a ele. A sua presença ou a ideia de sua presença proporcionam um ritual próprio no templo com bandeiras que denotam nacionalismo. A indumentária dos devotos também replica esse simbolismo: predomina a camiseta da seleção brasileira de futebol ou suas cores. A “arminha com a mão” é o gesto associado a esse culto e identifica seus fiéis entre si. Tudo é preparado para a exaltação do deus das armas: templo, corpos, vozes, cores, gestos. Os exemplos estão em abundância pela internet. Essas reuniões são publicizadas sem qualquer constrangimento.
Esse culto baalsonarista parece propor um sincretismo com o ritual cristão, numa conjugação que adapta e molda a fé convencional aos novos valores propostos. Esse culto pode conviver tranquilamente com as concepções cristãs, mas elas devem estar aptas a se dobrar aos seus postulados. O culto baalsonarista não é concorrente da fé cristã, desde que o cristianismo se acomode a ele. Não é, aparentemente, uma devoção que ameace o culto da cristandade, com a condição de que ele próprio seja a chave de releitura da tradição. A benção apostólica ministrada ao final dos cultos é substituída ou complementada pelo malfadado, anti-cristão e fascista slogam: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Os profetas de Baal recebem benesses por isso, mas o povo que segue os profetas que seguem Baal, não é ouvido. Baal não os responde, pois está ocupado com coisas mais importantes (sigilo, orçamento secreto, sua própria família etc.) e entende que as preces são apenas “mimimi”.
As próprias leituras bíblicas passam a ser retorcidas a fim de darem sustentação às doutrinas recém-sacramentadas: “bandido bom é bandido morto” e “uso de armas pelo cidadão de bem”, por exemplo. Os líderes religiosos se dedicam a procurar textos canônicos que justifiquem esses e outros pressupostos, bem como toda a polarização política e religiosa decorrente. A Bíblia passa a estar a serviço dessa ideologia, e tudo o que Baal diz precisa ser justificado com as Escrituras. E as malabares hermenêuticas não têm limite: eles conseguem até mesmo defender a correlação entre Jesus e armas.
Aliás, o próprio Baal era a divindade da violência. Por isso mesmo, se um padre disser: “Pátria amada não é pátria armada”; acabou-se. O último dia 12 de outubro, na Basílica de Aparecida, no Vale do Paraíba, interior paulista, não pode ser esquecido. Quando o baalsonarismo foi confrontado pelo cristianismo, encerrou-se a paz entre as religiões. Foi o estopim para que os devotos de Baal se levantassem contra o catolicismo. Os adoradores da divindade estrangeira passaram a não respeitar o santuário cristão e vociferaram contra a fé católica. E o próprio Baal reforçou a guerra ao dizer, entre outras coisas, que a Igreja Católica seria responsável pela miséria no Brasil. Diversos padres e até mesmo o Papa (que abençoou seu oponente político e pediu bênção a quem divide o pão com os famintos) foram alvo de críticas, perseguições, ameaças e acusações. A perseguição baalsonarista passou a interromper missas e homilias que se aproximam de Cristo em detrimento de Baal.
O medo agora é que a sobrevivência das igrejas e a permanência de um cristão em sua denominação religiosa estejam atreladas à sua concomitante adesão irrestrita a essa nova divindade. Para quem temia que igrejas fossem fechadas… muitas já se tornaram templos de Baal, ou seja, já não são mais exatamente igrejas…
Referência
MOURA, Rogério Lima de. O Concílio dos Deuses no Salmo 82 e na Literatura Ugarítica. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2012.