“Houve no céu um silêncio durante cerca de meia hora”. Aos menos familiarizados com os textos bíblicos, lembro que esse enunciado um tanto enigmático é evocado do livro de Apocalipse 8.1, o controverso livro das “revelações”. A propósito, nada melhor que começar por uma cena apocalíptica. O imaginário popular da literatura apocalíptica judaico-cristã produz a imagem de que o “céu”, o andar superior em relação à habitação do humano, desconhece o silêncio! A imagem de um eterno louvor à divindade entronizada é evocada sempre que se imaginam figuras angelicais tocando harpas – ou “trombetas”, no caso do Apocalipse – e ecoando coros no estilo do Canto Gregoriano pela cidade celeste. Aos que apreciam arte, basta visualizar as iconografias clássicas ou a imagem da Capela Sistina, de Michelangelo, para se certificar do provável barulho que deve ser o céu (ao contrário da imagem que se faz da quietude do paraíso). Algo aconteceu para o inesperado “silêncio de meia hora no céu”. Mas, deixo aos teólogos a função de explicá-lo. Por mim, que os anjos voltem a cantar e tocar trombetas! Quero falar sobre o “silêncio na Terra”, o único que realmente existe e onde anjos não há – nem mesmo os da guarda; ou melhor, quero falar sobre o “silêncio dos indecentes”, nada inocentes, nomeados assim pelo falso moralismo.
O imaginário apocalíptico é evocado com frequência por dois tipos de pessoas: de um lado, por “promotores” do fim do mundo e, de outro, por “expectadores”. A combinação desses dois tipos resulta, no pior dos casos, numa postura resignada – afinal, o fatalismo está dado e resta pouco o que fazer. Quando entediados, ambos contribuem para apressar o cumprimento das demoradas profecias que, por sua vez, não se “realizam” em virtude da capacidade de prever o futuro, mas de repetir a estupidez do passado. Não há nada de excepcional em profecias, pois o “fim do mundo” já aconteceu inúmeras vezes e os agentes desse eterno retorno são sempre os mesmos! Os dois tipos de pessoas, quando convém, assistem resignados o roteiro repetido do fim do mundo enquanto aguardam – em vão, diria – uma intervenção divina. Adoram um barulho, mas quando convém se silenciam. E, por falar na espera do divino, há motivos para crer que Jesus morreria novamente pelas mãos desses agentes do caos que dizem: “Maranata!”. É provável que o corpo glorioso de Jesus, o corpo negro, não seria aceito: eis a razão de sua demasiada demora. Pelo desenrolar do filme repetido, é recomendado não voltar.
Mas, caso Jesus volte para estabelecer seu Reino, conjecturemos na lógica do imaginário da escatologia cristã: mal teria tempo de visitar a geopolítica da nova Jerusalém terrestre e logo experimentaria, ainda com seus pés nas nuvens, uma das maiores decepções com os novos fariseus: encontraria agentes promotores e expectadores do fim do mundo como Silas Malafaia, Marco Feliciano, Damares Alves, André Valadão, Padre Kelvin… Kelmon…, ninguém sabe ao certo (isso, o padre que “caiu do céu”, nos termos de Bolsonaro) e tantos outros – nomeá-los esgotaria os limites desse artigo. Enquanto lê, com certeza o leitor deve ter acrescido essa lista interminável e não hesitaria extrapolar o campo da religião. Seria minha vez de expectação: como seria esse encontro? Essa cena épica jamais seria roteirizada pelas novelas da Record – não por falta de orçamento (sabemos que possuem), mas pelo constrangimento moral: “pintaria um silêncio”, com certeza.
Seria interessante assistir as justificativas para o “silêncio” (em nossos termos, “passada de pano”) desses agentes diante do assédio que promovem nos templos, em flagrante crime eleitoral, coagindo fieis a votarem em Bolsonaro. Como explicariam a expulsão de membros da comunidade por discordarem? E o silêncio diante da interrupção de missas católicas, em Aparecida – ainda mais ante os alardes de fechamento de templos? E o silêncio ensurdecedor diante do “pintou um clima” com adolescentes, comportamento pedófilo do “messias” usurpador, tão ostentado pelo pânico moral? E o silêncio diante das propinas em barra de ouro por pastores no Ministério da Educação? E o silêncio diante da hipocrisia dos sertanejos moralistas em nome de suas famílias (algumas abandonadas)? E o silêncio diante da postura golpista e fascistóide do ex-deputado Roberto Jefferson ao resistir e ferir agentes da polícia federal (visto após a prisão empunhando uma Bíblia)? Como explicariam a substituição do “amai-vos uns aos outros” por “armai-vos”? E o silêncio em relação aos ataques misóginos, homofóbicos e racistas promovidos por Bolsonaro e seus asseclas? E o barulhento silêncio diante das notícias falsas nos púlpitos? Pelo visto, não há dúvida que “pintou um silêncio” e conivência com todos esses crimes. Finalmente, seria minha vez de expectação da famosa frase de Jesus dispensada aos fariseus: “sepulcros caiados”.
Os agentes promotores e expectadores do fim do mundo agem como tal porque são incapazes de promover a paz e conviver com a diversidade de pensamento e modos de existir. Por egoísmo, apressam o fim do mundo não só para si, mas para os outros – afinal, creem que estarão no paraíso enquanto os outros que se danem. Nada mais egoísta! Por farisaísmo, exigem dos outros a moralidade que não possuem. Nada mais hipócrita! Quando convém, os indecentes gritam estridentemente; quando convém, se silenciam (vide Malafaia, Feliciano e Damares), pois está em jogo interesses que são desse mundo e não do celeste porvir, como piedosamente fazem crer. Em reação aos que agem para apressar o novo fim do mundo, desse único mundo, devemos preencher o silêncio de meia hora dos indecentes com os gritos de Antígona em memória dos que foram silenciados: “por mais que os tiranos apreciem um povo mudo, o povo fala. Aos sussurros, a medo, na semiescuridão, mas fala”. Meia hora para 33 milhões de pessoas que passam fome ou para quem revira lixo a procura de comida é uma eternidade insuportável. Não estou disposto a nenhum segundo desse silêncio apocalítico. Gritemos: “Não passarão, fariseus!”
Referências
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Edições Paulinas, 1973.
SÓFOCLES. Antígona. Paz e Terra, 2003.