“A oração de Cosme: o pastor e a favela”, por Delcides Marques

“Derrotar Bolsonaro é um ato de amor”, eis os dizeres presentes na camiseta de um jovem carioca favelado. A essas quatro informações pessoais acresce-se que ele é criador e guia de turismo no projeto “Rolé na favela”. Esse jovem de 33 anos de idade é também pastor pentecostal, militante do Movimento Negro Evangélico e filiado ao Partido dos Trabalhadores. Nascido e criado na Favela da Providência, Cosme Felippsen é ministro da Igreja Assembleia de Deus e participa da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. 

Para o que nos interessa aqui, a voz de Cosme destoa daqueles líderes religiosos que cederam às artimanhas malignas do baalsonarismo e chegaram a profetizar a reeleição de Jair Bolsonaro ou mesmo a proferir maldição ao candidato oponente. Tivemos, por exemplo, um conhecido pastor midiático pedindo a pedir a Deus que confundisse a mente de Lula e concedesse sabedoria a Bolsonaro [sic] para a realização do último confronto eleitoral televisionado. As tantas profetadas não se sustentaram diante dos resultados das urnas. A decepção decorrente dessas e outras profetagens malsucedidas foi atenuada pelo argumento da falibilidade das urnas. Ou seja, a derrota não foi ou está sendo facilmente digerida. Como se Deus quisesse uma coisa diferente do que foi o resultado eleitoral. Logo, a explicação plausível para eles é: as eleições foram fraudadas. Essa é parte da lógica que justifica as manifestações dos patriotas da fé que imploram intervenção militar em frente aos quartéis há mais de quinze dias, com súplicas aos militares e orações a Deus, para que as forças armadas implantem sabe-se lá qual reino.

Vai em outra direção a oração de Cosme. Transcrevo a seguir uma prece desse jovem-pastor-turismólogo-carioca-negro-favelado-petista-pentecostal:

Senhor Deus eu te agradeço por este dia que estamos celebrando o dia da favela. Oh! Deus querido, eu te agradeço Senhor por este momento que estou aqui com meus irmãos. Senhor eu te peço que abençoe cada um do Movimento Negro Evangélico, que abençoe Senhor todos os favelados, que abençoe todos os brancos que vivem na favela, que são pobres, que estão na batalha! Os que estão correndo atrás, os trabalhadores. E abençoe todos os evangélicos e não evangélicos que moram nas favelas, que o Senhor guarde e livre. Eu te peço que o Senhor tire os caveirão das favelas. Eu te peço que o Senhor tire esse genocídio da juventude negra das favelas. Eu te peço que o Senhor envie mais médicos, envie mais professores, mais creches, mais escolas. Eu te peço que o Senhor dê garra, dê força ao teu povo Senhor, para brigar, para lutar, para ir bater na porta aonde for, para pedir solução. Porque Senhor Jesus Cristo eu acredito que favela não é um problema, favela é a solução dos trabalhadores e trabalhadoras deram pra sua questão de moradia. Abençoe as nossas vidas em nome do Senhor Jesus. Amém!”

A oração foi proferida no dia 04 de novembro deste ano e divulgada em sua conta no Instagram, quando se comemorava o dia da favela. Ela pede um sonoro “Amém” ao final. Que assim seja! Afinal de contas, essa súplica evoca temas que seriam da alçada do Estado e que são correlacionados a um pedido de fé: saúde, educação, segurança e moradia. Mais ou menos pedindo: “Dê-nos, Senhor, o que o Estado não nos garante”. Se o Estado não age como deveria, é o caso de pedir à divindade que faça acontecer. Como disse Marcel Mauss no conhecido A prece (sua inacabada tese de 1909): “A oração é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem uma meta e um efeito: no fundo, é sempre um instrumento de ação. Mas age exprimindo ideias, sentimentos que as palavras traduzem externamente e substantivam”. E arremata: “Falar é, ao mesmo tempo, agir e pensar”.

No limite, a prece de Cosme segue a sequência de uma estrutura de oração cristã convencional: agradecimento, pedido, credo e finalização. Mas como há tanto mais a pedir, pois a situação exige, essa oração é marcada por um protesto protestante, pois nasce justamente do enfrentamento de condições sociais adversas: oração como grito oprimido diante das injustiças. Oração por todos, evangélicos ou não-evangélicos, trabalhadores e desempregados, negros e brancos. Essa prece não é feita como um modo de comodismo ou de fuga da realidade, mas está atrelada à luta dos movimentos sociais e acha-se vinculada à disposição dos favelados para enfrentar as labutas. Sobre as complexas relações entre pentecostalismo e favela no Rio de Janeiro, vale muito conferir as pesquisas de Christina Vital.

Para finalizar, quero destacar apenas mais um ponto: Cosme pede para que apenas duas coisas sejam retiradas da favela, o caveirão e o genocídio da juventude negra, ou seja, menos carros militares blindados e menos necropolítica, menos armas e menos mortes. Em contrapartida, melhores condições para saúde, educação, segurança e moradia. Oração com consciência de classe é um luxo!

Referências

MAUSS, Marcel. “A prece”. In: Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999 [1909], p. 230.

VITAL, Christina. Oração de traficante. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.

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