“Derrotar Bolsonaro é um ato de amor”, eis os dizeres presentes na camiseta de um jovem carioca favelado. A essas quatro informações pessoais acresce-se que ele é criador e guia de turismo no projeto “Rolé na favela”. Esse jovem de 33 anos de idade é também pastor pentecostal, militante do Movimento Negro Evangélico e filiado ao Partido dos Trabalhadores. Nascido e criado na Favela da Providência, Cosme Felippsen é ministro da Igreja Assembleia de Deus e participa da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.
Para o que nos interessa aqui, a voz de Cosme destoa daqueles líderes religiosos que cederam às artimanhas malignas do baalsonarismo e chegaram a profetizar a reeleição de Jair Bolsonaro ou mesmo a proferir maldição ao candidato oponente. Tivemos, por exemplo, um conhecido pastor midiático pedindo a pedir a Deus que confundisse a mente de Lula e concedesse sabedoria a Bolsonaro [sic] para a realização do último confronto eleitoral televisionado. As tantas profetadas não se sustentaram diante dos resultados das urnas. A decepção decorrente dessas e outras profetagens malsucedidas foi atenuada pelo argumento da falibilidade das urnas. Ou seja, a derrota não foi ou está sendo facilmente digerida. Como se Deus quisesse uma coisa diferente do que foi o resultado eleitoral. Logo, a explicação plausível para eles é: as eleições foram fraudadas. Essa é parte da lógica que justifica as manifestações dos patriotas da fé que imploram intervenção militar em frente aos quartéis há mais de quinze dias, com súplicas aos militares e orações a Deus, para que as forças armadas implantem sabe-se lá qual reino.
Vai em outra direção a oração de Cosme. Transcrevo a seguir uma prece desse jovem-pastor-turismólogo-carioca-negro-favelado-petista-pentecostal:
A oração foi proferida no dia 04 de novembro deste ano e divulgada em sua conta no Instagram, quando se comemorava o dia da favela. Ela pede um sonoro “Amém” ao final. Que assim seja! Afinal de contas, essa súplica evoca temas que seriam da alçada do Estado e que são correlacionados a um pedido de fé: saúde, educação, segurança e moradia. Mais ou menos pedindo: “Dê-nos, Senhor, o que o Estado não nos garante”. Se o Estado não age como deveria, é o caso de pedir à divindade que faça acontecer. Como disse Marcel Mauss no conhecido A prece (sua inacabada tese de 1909): “A oração é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem uma meta e um efeito: no fundo, é sempre um instrumento de ação. Mas age exprimindo ideias, sentimentos que as palavras traduzem externamente e substantivam”. E arremata: “Falar é, ao mesmo tempo, agir e pensar”.
No limite, a prece de Cosme segue a sequência de uma estrutura de oração cristã convencional: agradecimento, pedido, credo e finalização. Mas como há tanto mais a pedir, pois a situação exige, essa oração é marcada por um protesto protestante, pois nasce justamente do enfrentamento de condições sociais adversas: oração como grito oprimido diante das injustiças. Oração por todos, evangélicos ou não-evangélicos, trabalhadores e desempregados, negros e brancos. Essa prece não é feita como um modo de comodismo ou de fuga da realidade, mas está atrelada à luta dos movimentos sociais e acha-se vinculada à disposição dos favelados para enfrentar as labutas. Sobre as complexas relações entre pentecostalismo e favela no Rio de Janeiro, vale muito conferir as pesquisas de Christina Vital.
Para finalizar, quero destacar apenas mais um ponto: Cosme pede para que apenas duas coisas sejam retiradas da favela, o caveirão e o genocídio da juventude negra, ou seja, menos carros militares blindados e menos necropolítica, menos armas e menos mortes. Em contrapartida, melhores condições para saúde, educação, segurança e moradia. Oração com consciência de classe é um luxo!
Referências
MAUSS, Marcel. “A prece”. In: Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999 [1909], p. 230.
VITAL, Christina. Oração de traficante. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.