“Sobre despir-se dos privilégios: Uma crítica da razão condescendente”, por José Edilson Teles

“A população brasileira percebe a existência do racismo, falta o passo seguinte que é reconhecer a necessidade de combatê-lo”.
Sérgio COSTA, Dois atlânticos, 2006, p. 218.

 

Sem delongas, direto ao ponto. A naturalização das práticas cotidianas que estruturam o racismo por meio de técnicas e procedimentos requer urgente celeridade nos debates sobre os privilégios. Argumento desde já a necessidade de uma crítica à razão condescendente: não basta lembrar que as populações negras existem apenas em alguns dias dos meses de maio (por ocasião de um mito da “princesa libertadora”) ou novembro (sobre o qual alguns ainda vociferam por uma “consciência humana”) e, em seguida, retomar a vida ordinária com frases do tipo “o próprio negro não se valoriza” ou “não sou racista, tenho até um amigo/empregado negro”. As datas comemorativas são, deveras, importantes no calendário nacional. Contudo, a condescendência temporária manifesta em conversas apressadas e atividades pedagógicas protocolares do mito da democracia racial materializada em cartolinas esquecíveis são incapazes de produzir consciência histórica sobre as lutas e resistência de povos subalternizados. Na verdade, esses protocolos mais ocultam que desvelam. Na contramão da razão condescendente, é preciso tornar urgente e diário o debate sobre questões raciais capazes de produzir incômodos entre os que se beneficiam de um sistema de privilégios e promover engajamentos numa luta verdadeiramente antirracista. Protocolos são meios instrumentais e não fins.  

Por conta dos limitados recursos da linguagem, toda definição é arbitrária e, portanto, deixa escapar alguma coisa do fenômeno que busca apreender. Sem contar que os objetos de nomeação variam no tempo e espaço. O mesmo acontece com as concepções que procuram abarcar o que chamamos de “racismo”, pois o engajamento antirracista depende do modo como é mobilizado. Além disso, o mito da democracia racial que “respiramos” produz um ocultamento. Precisamos, pois, de uma concepção capaz de desvelar os mecanismos de poder que insistem em manter-se na invisibilidade. Se tomarmos a definição de racismo como um dispositivo de poder no sentido dado por Michel Foucault (2009 [1970]), teremos condições de problematizar uma série de técnicas e procedimentos que operam cotidianamente na formação dos sujeitos. Desse ponto de vista, veremos que o sistema de privilégio que confere vantagens ao sujeito branco é operado pelo racismo como um dispositivo de poder. O sujeito branco que se beneficia desses privilégios, ainda que inconscientemente, e deseja participar de uma luta antirracista, não basta o jogo de condescendência temporária. É preciso despir-se dos privilégios cotidianamente.    

Avancemos um pouco mais. A partir da década de 1990, alguns pesquisadores passaram a problematizar os privilégios da identidade racial branca em diferentes contextos, nomeando-a de “branquidade”. Ruth Frankenberg (2004) argumenta que a “branquidade” é uma posição de poder configurada pelo sistema colonial que confere privilégios materiais e simbólicos aos sujeitos brancos. Além disso, essa ideologia produz um jogo sofisticado de classificação de onde o sujeito branco vê a si mesmo como padrão normativo de ser humano e os outros, tidos como “desviantes” desse padrão normativo. A face cruel dessa ideologia é desvelada quando se verifica que ela produz não apenas hierarquias externas entre brancos e outros grupos racializados, mas também entre níveis de brancos ideais. Ou seja, o sujeito que se considera branco na periferia do capitalismo (e que exibe com orgulho seus traços europeus) passa mal ao descobrir que é um branco de categoria “inferior” em outros lugares. Portanto, não há engajamento antirracista possível sem o desvelamento dessa ideologia racial branca global.    

Silvio Almeida, no libelo seminal Racismo estrutural, publicado em 2019, propõe a tese de que o racismo é sempre estrutural na medida em que integra a ordem econômica, política e social. Conforme esse autor, o racismo não é apenas um fenômeno psicológico ou um conjunto de atos discriminatórios relacionados a comportamentais individuais, tal como supõe a concepção individualista que ainda marca as definições jurídicas correntes, segundo as quais a solução limita-se à esfera da lei. Tão pouco se trata de um fenômeno patológico, um tipo de irracionalidade que toma de assalto indivíduos monstruosos e de mau caráter, sobre os quais nos indignamos (com razão, diga-se) todas as vezes que assistimos os noticiários. O problema é mais complexo. O sujeito capaz de se indignar diante dos noticiários é, ao mesmo tempo, o sujeito que reproduz o racismo em outros níveis discursivos, pois esse dispositivo de poder é exercido por pequenas técnicas e procedimentos – nos termos de Foucault. O sujeito que diz “precisamos acabar com o racismo” é capaz de articular ao mesmo tempo o argumento de que “o negro não se valoriza”. O sujeito que deseja “igualdade” de oportunidade para todos expressa ao mesmo tempo o medo de “perder” a vaga para cotistas e não hesita em reproduzir o que Maria Aparecida Silva Bento (2002) chama de “pactos narcísicos” para proteger seus privilégios “ameaçados”. O sujeito que se gaba dos “esforços” meritórios individuais, sem considerar as condições materiais de desigualdade, justifica em seguida o lugar de subalternidade dos corpos abjetos. Em termos gerais, é isso que chamamos de técnicas e procedimentos que mantem privilégios.      

O conceito de “racismo estrutural”, tal como sintetizado por Silvio Almeida, tem a vantagem de superar a concepção individualista com a qual fomos socializados e destacar o aspecto sistêmico do racismo. Nesse sentido, o racismo é concebido como a coluna central sobre a qual as relações sociais, políticas e econômicas foram edificadas, sedimentadas e naturalizadas ao longo de séculos. De modo radical, isso implica em dizer que as relações e os afetos que constituem o sujeito são estruturados pelo racismo! Essa “estrutura” sofisticada garante a distribuição e manutenção de privilégios a certos grupos que dominam as instituições políticas, econômicas, jurídicas e sociais. Logo, as instituições – ocupadas por pessoas, não esqueçam! – materializam essa estrutura na medida em quem legitimam e naturalizam um sistema de privilégios em diferentes graus. Sim, leitor, ainda que não queiramos, não escapamos disso. Como despir-se dos privilégios e participar de uma luta antirracista? Faço, a seguir, uma síntese de um debate muito recente acerca da “branquidade” (BENTO, 2002; FRANKENBERG, 2004; LORDE, 2009; SCHUCMAN, 2014; ALMEIDA, 2019; RIBEIRO, 2019). 

Em primeiro lugar, assim como o machismo não é problema das mulheres e a homofobia não é problema da comunidade LGBTQUIA+, mas de uma masculinidade tóxica, do mesmo modo o racismo não é problema das vítimas racializadas, mas da ideologia racial branca que confere privilégios a corpos tidos como ideais. Os sujeitos brancos que desejam engajar-se numa luta verdadeiramente antirracista, para além de protocolos condescendentes temporários, precisam despir-se cotidianamente dos privilégios que os beneficiam – ainda que não tenham consciência disso. Como venho insistindo, não se trata de uma condescendência temporária, tal como aprendemos em protocolos escolares esquecíveis, mas de um exercício diário de despojar-se de heranças materiais e simbólicas que lhe confere vantagens.     

Em segundo lugar, o debate contemporâneo chama atenção para o fato de que as estratégias antirracistas precisam articular a questão da raça, classe e gênero como um projeto de luta interseccional, pois, como diria Audre Lorde, “não há hierarquias de opressão” (2009). Se o racismo estrutural dispõe de uma linguagem global (porque foi construída para ser “naturalizada”), como é o caso dos defensores da supremacia branca, é preciso que suas implicações sejam pensadas em múltiplas escalas. Um projeto antirracista precisa dar-se conta dos diferentes tipos de opressão e combatê-los em conjunto (se possível, com tecnologias análogas). Uma luta por “recortes” e pela metade é incapaz de enfrentar as diferentes hierarquias.  

Em terceiro lugar, é preciso investir em políticas públicas permanentes, despidas da lógica de condescendência que marcam nossas pedagogias. Do ponto de vista da ação política, isso implicaria a necessidade de atuação por meio de política de ação afirmativa, por meio de mecanismos eficientes de criminalização do racismo e por meio da norma universal de oportunidade. Se as instituições reproduzem a lógica de manutenção dos privilégios, é por meio da ocupação dessas instituições que se devem promover princípios de equidade e reparação. 

Por fim, se o racismo é uma realidade incontestável, estrutural e institucionalizado, é preciso criar a necessidade de combatê-lo em diferentes níveis. Os que desejam combatê-lo de modo eficaz precisam desconfiar dos protocolos pedagógicos esquecíveis que venho criticando. Nos termos de Angela Davis: “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. Ainda nessa direção, bell hooks (1990) argumenta que os sujeitos brancos precisam fazer autocrítica e, no engajamento de uma luta antirracista, participar da desmistificação da branquidade como forma de domínio. Do contrário, perpetuaremos o mito da democracia racial ritualizado no carnaval entre fevereiro e março! Do contrário, continuaremos a realizar – sem efeito – atividades pedagógicas em cartolinas nos meses de maio e novembro! Pais, supostamente preocupados com a educação de seus filhos, continuarão reclamando de atividades pedagógicas sobre cultura afro-brasileira ao mesmo tempo em que exaltam mitologias greco-romanas e nórdicas! Sem dar-se conta, gestão escolar, professores, pais e alunos entram num loop de protocolos ineficazes e esquecíveis, anos após anos, incapazes de lidar com as técnicas e procedimentos que estruturam o racismo e os privilégios materiais e simbólicos da branquidade. Se quiserem participar de uma luta antirracista, dispam-se da razão condescendente e seletiva já!.        

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen, 2002.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de doutorado (Psicologia), Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2002.

COSTA, Sérgio. Dois atlânticos: Teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG/Humanitas, 2006.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola 2009 [1970].

FRANKENBERG, Ruth. “A miragem de uma Branquitude não marcada”. In: WARE, Vron. (Org.), Branquidade, identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

HOOKS, bell. Yarning. Boston: South and Press, 1990.  

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. Companhia das Letras, 2019.

SCHUCMAN, Lia Vainer. “Branquitude e poder: revisando o ‘medo branco’ no século XX1”. In: Revista da ABPN, v. 6, n. 13: mar. – jun. 2014.  

LORDE, Audre. “Não há hierarquias de opressão”. In: Textos escolhidos, 2009.

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