“O vale dos ossos secos (Ezequiel 37)”, por Cláudio de Oliveira Ribeiro

(“Mães paralelas”)

Há de assaltar os bares
De retomar as ruas
De visitar os lares
Antes que seja tarde
Há de rasgar as trevas
E abençoar o dia
E de guardar as pedras
Antes que seja tarde
Com força e com vontade
A felicidade
Há de se espalhar
Com toda intensidade
Com força e com vontade
A felicidade
Há de se espalhar
Com toda intensidade
Há de deixar sementes
Do mais bendito fruto
Na terra e no ventre
Antes que seja tarde
Há de fazer alarde
E libertar os sonhos
Da nossa mocidade
Antes que seja tarde

(“Antes que seja tarde”,
de Ivan Lins e Vitor Martins)

O filme “Mães paralelas” (2021), de Pedro Almodóvar, é excepcional. Sou suspeito para dizer qualquer coisa, pois gosto demais de todos (eu disse to-dos!) os filmes dele. Não se trata de avaliação do conteúdo cinematográfico. É paixão mesmo! Gosto antes de ver. Independentemente se é tido como de boa qualidade, breguice ou coisa que o valha. Pois bem! Eu apertei a tecla (Netflix), liguei no modo emoção, curti cada cena, me envolvi, entrei na tela da TV várias vezes e depois fui dormir com alto teor de satisfação.

“Mães paralelas” trata de um monte de temas, todos complexos e que interpelam nossas vidas. Política, família, maternidade, feminismo, sexualidade, paixões, compromissos, projetos de vida, afetos… O filme nos convida a pensar sobre o poder da verdade e a dificuldade de estabelecê-la como prioridade, seja no âmbito pessoal e das inter-relações, seja na dimensão macro da vida de um país.

Com belíssimas interpretações, a trama nos surpreende a cada instante. Prende nossa atenção, nos faz perceber o valor da solidariedade, dos ideais utópicos, da importância da sensibilidade humana. Também revela que a vida é frágil e que deixa marcas, quase sempre profundas e doloridas.

No envolvente enredo, duas mulheres dão à luz duas meninas, no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis (Penélope Cruz), de meia-idade, profissional autônoma e financeiramente independente, teve a gravidez planejada e se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana (Milena Smit), adolescente, sem o amparo da família, engravidou por acidente, em uma relação violenta, e tem medo do que está por vir, além de arrependida e, em largo sentido, traumatizada. Ambas estão igualmente acompanhadas por mulheres: Elena (Rossy de Palma), amiga de infância e conterrânea de Janis, com quem compartilha a experiência traumática dos antepassados mortos na guerra civil espanhola, e Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), mãe de Ana, que articulou a carreira de atriz sem renúncias em relação à maternidade, com as consequências que um processo como esse usualmente possui.

As duas enfrentam essa jornada como “mães solteiras”, pois não têm a companhia dos pais das crianças, e enquanto esperam pela chegada dos bebês, caminham pelos corredores do hospital, compartilhando confissões, desabafos e sonhos. Ao dividir não somente o mesmo quarto de hospital, como também esse momento intenso e significativo de suas vidas, elas, unidas pelo laço da maternidade, constroem um vínculo profundo e complexo e esse encontro transforma a vida de ambas para sempre.

Estamos diante de uma excêntrica e surpreendente história sobre dores e encantos da maternidade, sobre crises e balanços existenciais, em especial de mulheres, e sobre a possibilidade de se resgatar e recriar o passado. Quanto aos pais, sobram poucos vestígios, seja porque estão mortos e figuram apenas no imaginário, seja porque renunciaram a esse papel ou simplesmente se encontram ausentes na história dessas mulheres, que precisaram tecer redes de apoio, empoderamento e afeto entre si.

O filme também propõe e desenvolve temas que estão inseridos em um contexto político histórico, a guerra civil espanhola. O bisavô de Janis foi vítima do grupo fascista Falange Espanhola em um massacre na guerra civil, ocorrida entre 1936 e 1939, que culminou no franquismo, regime fascista que perdurou na Espanha até os anos de 1970. Como se sabe, apagar a história e ideologizar as narrativas são táticas adotadas por governos autoritários para manutenção do poder, embora o que é soterrado insista em reaparecer e assombrar o presente.

Janis havia pedido ao arqueólogo Arturo (Israel Elejalde) que conseguisse encontrar os restos mortais de familiares assassinados. Os dois acabaram se envolvendo amorosamente, e a relação havia terminado quando Janis soube que estava grávida. O processo de descobertas dela, marcado por uma extraordinária dedicação na busca dos restos mortais de seu bisavô, coincide com uma trajetória de interiorização geográfica no filme. A história se desloca de Madri para o campo, e daí para debaixo da terra, onde são revelados os restos mortais de homens assassinados na guerra. No caminho inverso, as protagonistas do filme experimentam a vida do útero para fora, com a promessa e realização de vida onde nascem duas outras frágeis e potentes criaturas.

Foi o renomado teólogo alemão Jürgen Moltmann que utilizou a metáfora do nascimento de uma criança para mostrar a ação do Espírito na vida humana e no conjunto da criação. Todo ser que nasce carrega a vontade de se desenvolver. Quando a vida de uma criança tem início, seu objetivo é aguçar os sentidos, experimentar o novo, a luz, o ar e crescer gradativamente até chegar ao seu alvo. Assim, a vida que “nasce do Espírito” quer se desenvolver e ganhar formato. No livro Deus na criação, o autor nos diz que:

A vida que nós dizemos que “renasceu” do eterno Espírito de Deus quer crescer e ganhar forma. Nossos sentidos também renascem. Os olhos iluminados da razão despertam para o conhecimento de Deus, para perceber a claridade de Deus sobre a face de Cristo. A vontade libertada avalia nas diretrizes da vida suas novas forças. O coração palpitante experimenta o amor de Deus e se aquece para o amor à vida, tornando-se vivo a partir de sua origem. (2003, p. 156)

As potentes mulheres protagonistas do filme, no melhor estilo Almodóvar, aprendem umas com as outras que o passado precisa ser encarado, revisto, superado. “Trazer à memória o que nos traz esperança”, como na mensagem bíblica. Não se trata meramente de desenterrar cadáveres. O que eles precisam, mesmo, é tornarem a viver em novos corpos vivos (desculpem-me pelo spoiler).

Tal visão pode fazer emergir uma espiritualidade que realce as possibilidades de afirmação do corpo, tanto em seu poder erótico como em seu poder criativo de dar a vida e de ser fonte de cura e de libertação. Tempos atrás, achei no exemplar do livro Variações sobre a vida e a morte (1982), de Rubem Alves, que tenho em casa, um pequeno texto do próprio livro que transcrevi na dedicatória que havia feito para a minha namorada na época:

Ao corpo, entretanto, interessa a sapiência,
conhecimento que tem bom gosto,
porque o corpo avalia com o amor e o prazer,
e não com a inteligência desencarnada.
E é aqui que mora o teólogo,
no lugar onde a palavra é corpo, poder, entidade do mundo material,
chave que abre e fecha, agulha que costura as partes do mundo.

No enredo do filme, as gerações se encontram, com os seus perfis variados, com valores, corpos e narrativas distintas. Também diferentes níveis sociais estão presentes, com as interpretações políticas que lhes são cabíveis. Alienação e compromisso político, possibilidades e sonhos, vazios e completudes, verdades e mentiras. Não é diferente do contexto brasileiro. A interpretação da história representa enormes desafios para a juventude (no filme e na vida, incluindo a nossa). Para a felicidade e o empoderamento das mulheres, também. “… É um dom, uma certa magia, uma força que nos alenta”, como na canção de Milton Nascimento.

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