(“Mães paralelas”)
O filme “Mães paralelas” (2021), de Pedro Almodóvar, é excepcional. Sou suspeito para dizer qualquer coisa, pois gosto demais de todos (eu disse to-dos!) os filmes dele. Não se trata de avaliação do conteúdo cinematográfico. É paixão mesmo! Gosto antes de ver. Independentemente se é tido como de boa qualidade, breguice ou coisa que o valha. Pois bem! Eu apertei a tecla (Netflix), liguei no modo emoção, curti cada cena, me envolvi, entrei na tela da TV várias vezes e depois fui dormir com alto teor de satisfação.
“Mães paralelas” trata de um monte de temas, todos complexos e que interpelam nossas vidas. Política, família, maternidade, feminismo, sexualidade, paixões, compromissos, projetos de vida, afetos… O filme nos convida a pensar sobre o poder da verdade e a dificuldade de estabelecê-la como prioridade, seja no âmbito pessoal e das inter-relações, seja na dimensão macro da vida de um país.
Com belíssimas interpretações, a trama nos surpreende a cada instante. Prende nossa atenção, nos faz perceber o valor da solidariedade, dos ideais utópicos, da importância da sensibilidade humana. Também revela que a vida é frágil e que deixa marcas, quase sempre profundas e doloridas.
No envolvente enredo, duas mulheres dão à luz duas meninas, no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis (Penélope Cruz), de meia-idade, profissional autônoma e financeiramente independente, teve a gravidez planejada e se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana (Milena Smit), adolescente, sem o amparo da família, engravidou por acidente, em uma relação violenta, e tem medo do que está por vir, além de arrependida e, em largo sentido, traumatizada. Ambas estão igualmente acompanhadas por mulheres: Elena (Rossy de Palma), amiga de infância e conterrânea de Janis, com quem compartilha a experiência traumática dos antepassados mortos na guerra civil espanhola, e Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), mãe de Ana, que articulou a carreira de atriz sem renúncias em relação à maternidade, com as consequências que um processo como esse usualmente possui.
As duas enfrentam essa jornada como “mães solteiras”, pois não têm a companhia dos pais das crianças, e enquanto esperam pela chegada dos bebês, caminham pelos corredores do hospital, compartilhando confissões, desabafos e sonhos. Ao dividir não somente o mesmo quarto de hospital, como também esse momento intenso e significativo de suas vidas, elas, unidas pelo laço da maternidade, constroem um vínculo profundo e complexo e esse encontro transforma a vida de ambas para sempre.
Estamos diante de uma excêntrica e surpreendente história sobre dores e encantos da maternidade, sobre crises e balanços existenciais, em especial de mulheres, e sobre a possibilidade de se resgatar e recriar o passado. Quanto aos pais, sobram poucos vestígios, seja porque estão mortos e figuram apenas no imaginário, seja porque renunciaram a esse papel ou simplesmente se encontram ausentes na história dessas mulheres, que precisaram tecer redes de apoio, empoderamento e afeto entre si.
O filme também propõe e desenvolve temas que estão inseridos em um contexto político histórico, a guerra civil espanhola. O bisavô de Janis foi vítima do grupo fascista Falange Espanhola em um massacre na guerra civil, ocorrida entre 1936 e 1939, que culminou no franquismo, regime fascista que perdurou na Espanha até os anos de 1970. Como se sabe, apagar a história e ideologizar as narrativas são táticas adotadas por governos autoritários para manutenção do poder, embora o que é soterrado insista em reaparecer e assombrar o presente.
Janis havia pedido ao arqueólogo Arturo (Israel Elejalde) que conseguisse encontrar os restos mortais de familiares assassinados. Os dois acabaram se envolvendo amorosamente, e a relação havia terminado quando Janis soube que estava grávida. O processo de descobertas dela, marcado por uma extraordinária dedicação na busca dos restos mortais de seu bisavô, coincide com uma trajetória de interiorização geográfica no filme. A história se desloca de Madri para o campo, e daí para debaixo da terra, onde são revelados os restos mortais de homens assassinados na guerra. No caminho inverso, as protagonistas do filme experimentam a vida do útero para fora, com a promessa e realização de vida onde nascem duas outras frágeis e potentes criaturas.
Foi o renomado teólogo alemão Jürgen Moltmann que utilizou a metáfora do nascimento de uma criança para mostrar a ação do Espírito na vida humana e no conjunto da criação. Todo ser que nasce carrega a vontade de se desenvolver. Quando a vida de uma criança tem início, seu objetivo é aguçar os sentidos, experimentar o novo, a luz, o ar e crescer gradativamente até chegar ao seu alvo. Assim, a vida que “nasce do Espírito” quer se desenvolver e ganhar formato. No livro Deus na criação, o autor nos diz que:
As potentes mulheres protagonistas do filme, no melhor estilo Almodóvar, aprendem umas com as outras que o passado precisa ser encarado, revisto, superado. “Trazer à memória o que nos traz esperança”, como na mensagem bíblica. Não se trata meramente de desenterrar cadáveres. O que eles precisam, mesmo, é tornarem a viver em novos corpos vivos (desculpem-me pelo spoiler).
Tal visão pode fazer emergir uma espiritualidade que realce as possibilidades de afirmação do corpo, tanto em seu poder erótico como em seu poder criativo de dar a vida e de ser fonte de cura e de libertação. Tempos atrás, achei no exemplar do livro Variações sobre a vida e a morte (1982), de Rubem Alves, que tenho em casa, um pequeno texto do próprio livro que transcrevi na dedicatória que havia feito para a minha namorada na época:
No enredo do filme, as gerações se encontram, com os seus perfis variados, com valores, corpos e narrativas distintas. Também diferentes níveis sociais estão presentes, com as interpretações políticas que lhes são cabíveis. Alienação e compromisso político, possibilidades e sonhos, vazios e completudes, verdades e mentiras. Não é diferente do contexto brasileiro. A interpretação da história representa enormes desafios para a juventude (no filme e na vida, incluindo a nossa). Para a felicidade e o empoderamento das mulheres, também. “… É um dom, uma certa magia, uma força que nos alenta”, como na canção de Milton Nascimento.