Acabamos de presenciar o cúmulo da agressão baalsonarista à democracia brasileira. Havíamos testemunhado durante meses recorrentes ameaças, pedidos e manifestações de cunho golpista nos meios eletrônicos e nas portas dos quartéis. O germe e verme antidemocrático culminou na invasão, depredação e assolação planejada, financiada e efetivada por terroristas no Congresso Nacional na tarde de ontem, dia 08 de janeiro. Por algumas horas houve a instauração de uma verdadeira balbúrdia (palavrinha usada agora num contexto bem mais adequado que o universitário) no espaço destinado aos três poderes por milhares de militantes da extrema-direita. Tudo sendo filmado, transmitido, fotografado e celebrado amplamente e sem constrangimento pelas redes sociais. No final da tarde, contudo, os criminosos de verde e amarelo foram dispersos e centenas deles presos, de modo que o malfadado anelo golpista foi contido.
Algo que me impressionou nisso tudo foi a presença de um objeto em particular, bem como comportamentos religiosos durante a violação dos espaços públicos. Se tempos atrás diversos pastores vociferaram contra as instituições democráticas, se líderes religiosos instigaram dúvidas sobre a validade eleitoral das urnas, se representantes político-religiosos (ou religioso-políticos) se silenciaram diante de manifestações perigosas, se houve tanta conivência com mentiras divulgadas nas redes sociais, hoje tivemos a expressão mais arrojada dessa contaminação em forma de golpe de Estado. Uma tentativa de promover um caos institucional dissimulado em patriotismo e carregada de elementos religiosos foi neutralizada.
A combinação entre o fundamentalismo evangélico e o fanatismo político culminou numa religiosidade terrorista. O baalsonarismo é justamente essa articulação perniciosa que transforma a religião num veículo de ódio. E entre as imagens do vandalismo que circulam pela internet há pastores e sujeitos portando bíblias. Pasmem: alguns dos quais estão fazendo orações e falando até mesmo em línguas estranhas enquanto participam dessa insurreição sem qualquer razoabilidade. E também sem qualquer embaraço, o nome de Deus é associado de forma blasfema a essa destruição. Dentro do Congresso, alguns vândalos defecavam nas mobílias, enquanto outros cantavam o louvor 212 do tradicional hinário assembleiano, a Harpa Cristã. Entre dejetos e louvações, estava o terror do desrespeito ao Estado Democrático de Direito. No cristofascismo expresso ali havia ainda gritos de “O Brasil é do Senhor Jesus” e outras palavras de ordem.
Por um tempo eu pensava em tratar o tipo de sujeito envolvido como “doente” ou “insano”, como se ele precisasse de tratamento psicológico. Mas tenho reavaliado minha perspectiva patologizante, devido às conversas com Silvio Guimarães, amigo e estudante de psicologia. Atribuir a esses indivíduos qualquer deficiência dessa ordem, ou mesmo, nos termos sociológicos de ideologia, parece atenuar o drama. Como se eles fossem passivos frente a algo que os acomete e os leva a fazer o que fazem. Mas não podemos deixar de perceber em todo o horror implicado, justamente o fato de que são criminosos. São pessoas que planejaram e atentaram contra a democracia, bem como depredaram deliberadamente espaços oficiais. Por isso mesmo, a justiça precisa ser efetivada e o sistema do ódio precisa ser anulado. Eles não podem ser tolerados.
Interessante que as democracias modernas estão ancoradas na tolerância. A liberdade de crença, expressão, fé e estilo de vida é garantida a todos os cidadãos. Tolerar as diferenças e os diferentes é um princípio para a convivência harmoniosa. Mas, há um calcanhar de Aquiles nisso tudo. É preciso tolerar os intolerantes? Em linhas gerais, a resposta do filósofo Karl Popper, nomeada como “paradoxo da tolerância” sugere que a tolerância precisa ser intolerante com os intolerantes. Se os tolerantes tolerarem os intolerantes, a democracia e a própria tolerância correriam perigo.
Com isso, o extremismo repugnante desses destruidores da democracia, da cultura, da fé, da arte e da diferença não se coaduna com aqueles que acreditam que “bem-aventurados são os pacificadores…”. Mas como a pacificação não implica impunidade, as vozes cristãs precisam se manifestar contra tudo o que aconteceu, pois, “bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça…”. Os envolvidos precisam ser identificados, denunciados, investigados, presos e punidos. Sem anistia, sem moderação, sem impunidade, sem tolerância. Não pode haver silêncio e cumplicidade ante tamanha violência, baderna e delinquência. A pauta cristã é outra, muito diferente da covardia e atentado que vimos hoje. Não permitam que a fé em Cristo se torne instrumento de interesses contrários a ela, mas tratados como derivados de sua matriz.