“O discurso de Hereamuu: Quando a boca perde o medo. Fala ao Homem Branco”, por Jil Soares

O mito cosmogônico da tradição Yanomami é aquele que trabalha na carpintaria da origem e formação do mundo, se mescla ao mito teológico na interpretação do nascimento, das histórias, dos casamentos e genealogia dos deuses, reverberando no mito antropogônico, que se ocupa da análise narrativa da criação do Homem, como podemos observar a seguir:

Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cuja água bebemos. Foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos (KOPENAWA, Davi. A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, 2015).

Com sua alegoria mítica profusa de atemporalidades, que se (re)constrói a partir dos relatos orais transmitidos por anciãos à tribo Yanomami, como forma de perpertuamentos dos códigos sociais, morais e sagrados, na tentativa de manter o equilíbrio ancestral de seu povo, a mitologia Yanomami se fortalece na diacronia cultural que atravessa gerações, e se ressignifica frente às adversidades impostas através dos reflexos da lógica colonial/capitalista e de suas ilações na história, como refração seletiva na contemporaneidade por meio do garimpo ilegal e do acometimento de apagamentos das suas memórias por meio da usurpação de suas pertenças materiais e imateriais. Em sua obra intitulada “A queda do céu: Palavras de um Xamã Yanomami”, Davi Kopenawa tece um dos Testamentos mais urgentes que se soma a muitos outros na atualidade. Ele relata o cenário das políticas contemporâneas e a produção das epistemologias indigenistas enquanto denúncia de reparação/restituição histórica de suas terras, tradições e memórias; livro com forte ênfase na revelação da cosmogonia oral Yanomami e sua importância frente às lutas relacionadas aos retrocessos legais que têm se apresentado e perpetuado no atual contexto do país, desde os primórdios da colonização dos europeus e consequentemente da herança enraizada e disseminada através de suas violentas expoliações em terras indígenas brasileiras, que encontrou terreno fértil à continuidade das expropriações por meio de ideologias desenvolvimentistas, sob a égide da grilagem ancestral por intermédio da religião judaico-cristã e do poder aliciador e sedutor do agronegócio (que atua inclusive na cooptação de alguns líderes indígenas, como parte estratégica dos planos de exploração, mortes e desmatamentos de seus próprios povos e terras) no mercado em expansão da garimpagem. Um dos pontos que torna o livro extremamente necessário e à frente do tempo é o seu discurso, permeado de zonas pacifistas e, de algum modo, conciliadoras em sinal de alerta à humanidade, quando diz que:

[…] Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar. (KOPENAWA, 2015, p. 08.)

Mesmo que na eventualidade o homem branco/napê, seja o ponto nevrálgico de toda a quimera mítica enunciada nos postulados da maioria dos povos autóctones, às consequências advindas da destruição do planeta, atingirá a todos, ainda que de maneira gradual, sem exceção. Embora este “homem branco” esteja forjado sob a máscara da “Rostidade” tecnocientificista, ainda assim, lhes faltará meios para que os epônimos por eles impostos às civilizações dominadas fabriquem novas “Arcas de Noé” ou bunkers, como tautologias contemporâneas de perpetuamentos de si. Seriam essas suas novas soteriologias pós modernas como estratégia de redenção?

Esta aporia filosófica da cosmogonia Yanomami, da qual Kopenawa se utiliza para falar aos napês (inimigos, forasteiros) tem devorado por meio do incômodo apresentado de suas falas, através de ameaças de morte, por munir os seus enunciados de maiêutica imanente “Hereamuu” ao homem branco tecnocrata, confundindo toda esta classe que por muito tempo disseminou ao mundo a ideia de evolução e progresso promulgada pelas máquinas que ainda se fazem colonizadoras na nossa sociedade, ao que ele reitera e qualifica, quando diz:

Para ser capaz de proferir discursos em hereamuu com firmeza, é preciso conseguir a imagem do gavião KãoKãoma, que tem uma voz potente. (KOPENAWA, 2015. p. 381.)

Este Céu em constante desabamento vertical do qual somos alertados, tem golpeado à humanidade e devolvido à ela por intermédio de uma rebeldia molecular, as imagens assombrosas das ações facistas que persistem e isistem em desertificar nossa história. Pois o homem branco quer nos fazer acreditar que tudo que é anterior à Idade da Ciência é desprovido de Razão. Sendo assim de fácil aplicabilidade também nos fazer crer que toda existência que não esteja comungada com os postulados do discurso judaico-cristão é proveniente das trevas, da testa de Lúcifer (paradoxal). Pois só o seu mito fundante ou alegoria mítica é detentora e balizadora de “Verdades Proféticas” – Eis o projeto Decaído do Engendrado Complexo de Adão. Será que diante de tudo que temos visto e experiênciado na agoridade, por meio da potente mundialização do capital: Crise alimentar, escassez dos recursos naturais, vulnerabilidades econômicas, a crescente retomadas de conflitos mundiais, pandemias etc. seremos capazes de nos superar enquanto espécie e resgatar o nosso devir ancestral na tentativa de remontar as Sobrecodificacões do Desejo na manifestação do cotidiano, assim como proposto pelas culturas ancestrais das Sociedades Originárias, em que a dança, a música, a elaboração das expressões artísticas dos signos no corpo, nos objetos no chão, se encontravam intimamente imiscuidas às atividades rituais/litúrgicas das representações religiosas. A queda do Céu de Davi Kopenawa é mais uma ferramenta que nos possibilita dialogar com o Passado Inobservável que se faz e acontece de modo diacrônico, se refazendo no agora, articulando tradição, oralidade e ancestralidade em meio a tanta arbitrariedade teológica com suas imposições fundamentalistas. Tendo em vista como foco principal, atenuar corpos que estão em constantes conflitos de interesses nesta busca por Permanências de Espírito no mundo tal qual habitamos. Fato que me remete a um trecho de um artigo de Nicole Brenez (“O Estado do Cinema”, 2021), em que a autora diz:

[…] Como humanos, nós (ou a maioria) estamos conscientes de que a humanidade, e em particular a sua parte ocidental, provou ser a espécie mais tóxica, predadora e absolutamente louca do Planeta Terra, ao ponto de destruir seu próprio habitat – a natureza, o recurso inesgotável de encontros dignos de comunicação sem palavras. (BRENEZ, Nicole, 2021).

Dessa forma penso que, se o limite não acontecer por meio da ação humana, a própria natureza se incubirá de nos refrear mesmo que sob a queda vertiginosa do céu. Eis o germe de nossa própria ruína!

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