“Quando a religião é um mal”, por Delcides Marques

Há muitas pessoas que testemunham mudança de vida devido a alguma experiência religiosa. Desde vícios superados a mal-caratismo transformado, passando por sucesso financeiro e restauração familiar, os casos narrados são diversos e significativos. Inquestionavelmente, a religião pode produzir experiências fundantes e um renovado sentido de existência.

Mas há situações em que a religião pode ser uma péssima escolha. Para tanto, vou me concentrar no público evangélico, que conheço bem. Como há igreja para todo gosto, há gosto para toda igreja. E a confluência desses gostos nem sempre é benéfica (ou gostosa, para não perder o trocadilho). A conjunção entre certos adeptos e igrejas pode produzir pessoas delirantes ou perigosas. Nesses casos, a religião produz ou agrava o mal que deveria combater. Vejamos alguns tipos de pessoas cujo encontro religioso de tornou pernicioso.

Pessoas que associam espiritualidade a exibicionismo. Quanto mais espetacular a performance, mais haveria ali sinais de santidade. Decorre disso um sem-número de simulações e fingimentos públicos para sugerir uma manifestação sagrada. Algumas vezes, em forma de pulos, gritos e glossolalia. O que importa é que os outros me vejam expressando o divino com certos trejeitos, frases, vestimentas e movimentos corporais.

Pessoas que dizem uma coisa e fazem outra. Normalmente o dito é público e o feito é escondido, como se isso não fizesse diferença, e como se o próprio divino defendido não existisse e soubesse de todas as coisas; são os ateus práticos. E mesmo quando agem em público, as intenções são escusas. São exemplos de que a aparência é mais importante que a essência: quem parece ser é mais prestigiado do aquele que não parece, mas é.

Pessoas que vivem em desacordo com os próprios princípios da fé e do amor. Muitos, inspirados nos exemplos de seus líderes, fingem não haver qualquer inconveniente quando apregoam o ódio, a vingança e o desprezo pelo próximo. Algumas vezes defendem a tortura ou o torturador, mas nunca o Torturado. Assim, e cultivando valores invertidos, vivem num auto-engano falacioso e improdutivo.

Pessoas fanáticas que não aceitam dialogar com outras crenças. Às vezes até dissimulam interesse, mas a máscara logo cai. Na verdade, não aprendem a desenvolver o equilíbrio necessário e seguem alimentando a ignorância sobre formas diferentes de crer. Tudo o que não é do meu círculo é do demônio. E a negação do outro segue sendo a tônica desse anti-cristianismo disfarçado.

Pessoas violentas que encontram na religião uma forma de justificar suas maldades. Em muitos casos, se valem de argumentos doutrinários (e até de textos bíblicos) para perseguir, silenciar e oprimir outras pessoas. Mormente, ao atribuir ao outro a condição pecaminosa, sentem-se no direito de condenar qualquer diferença e maltratar o outro, quando não fisicamente, com outras formas de violência, como a verbal.

Pessoas que aprendem a repetir discursos, comumente ouvidos nos púlpitos, ou por gurus virtuais, sem conseguir distinguir entre a palavra sagrada e a fala manipulada por esses auto-intitulados representantes da vontade de divina. Sem a capacidade de discernir os falsos pastores, dão ouvidos a qualquer um que fale em nome de Deus.

Pessoas que possuem uma imagem desfigurada de pai. Elas acabam projetando na divindade os mesmos comportamentos apreendidos em casa, o que inclui punições e medos, tudo em nome de uma pretensa educação paterna castradora e intimidadora. Constitui-se uma vida religiosa marcada por termos como inferno, ira, juízo e castigo divinos. E uma expressão representa essa vil concepção: “a mão de Deus vai pesar”.

Pessoas que não conseguem fazer leitura crítica dos textos sagrados. Com isso, replicam trechos convencionais decorados com a finalidade hipócrita de evidenciar espiritualidade ou conhecimento hermenêutico, mas é tudo frágil, repisado e superficial. Aprendem que repetir é melhor que ler e pensar.

Pessoas que se tornam especialistas em julgar os outros, mas são incapazes de auto-crítica, pois se vêem como bastiões da verdade, até porque, se vissem seus próprios tropeços, não teriam tanta implicância com os deslizes dos outros. Isso produz réguas morais que só valem para as outras pessoas.

Pessoas que associam sucesso (mormente financeiro) à benção divina. O capitalismo passa a ser o credo religioso desses fiéis que entendem que o dinheiro deve ser buscado acima de tudo e como sinal de um fiel abençoado. E vale tudo (até a injustiça) pela riqueza, enquanto a pobreza é indício de falta de fé ou resultante de algum pecado. Assim, o pobre, além de lascado, é também culpado de sua própria condição, pois lhe falta “deus”.

Pessoas que boicotam a si mesmas em nome de regras e proibições infundadas, que só produzem culpa, ressentimento e angústia naqueles que aderem a elas. A prisão de tais costumes criados com certos interesses, são muitas vezes datados (mas tratados como atemporais), e outras tantas vezes convenientes apenas para uns poucos (uma seletividade vantajosa para líderes, homens, brancos, bem-sucedidos etc.), coincidentemente os mesmos que são detentores do poder de criar as determinações.

Pessoas que distinguem tudo por meio de um moralismo dualista inconsequente entre o pode e não pode, o faça e não faça, a ordem e a proibição. Cria-se uma oposição cosmológica que não permite cultivar emancipação, autonomia e liberdade pessoal responsável, apenas a submissão e a hierarquização do mando autoritário. Produz-se uma religião onde as consciências individuais são guiadas por outros, alguns dos quais sem consciência.

Pessoas insensíveis com a dor alheia. Como se o discurso que atribui a Deus todo o sofrimento humano fosse suficiente. Como se bastasse dizer que Deus está provando (ou repreendendo). Como se fosse da vontade divina o infortúnio, sem qualquer consolo, compaixão e empatia. E como se o próprio divino fosse impiedoso e indiferente ao drama humano.

Nesses e em muitos outros casos, o encontro entre certas pessoas e determinadas propostas religiosas produz danos pessoais e coletivos incomensuráveis. Aqui a religião funciona potencializando a maldade, o sofrimento e o preconceito, o que só torna mais difícil o desenvolvimento de um espiritualidade interessante, a propósito dos próprios valores cristãos.

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