Desde a década de 1990 a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil promove o cuidado e amparo a homossexuais. Outras denominações protestantes têm feito o mesmo. Mas essa questão é tratada com imensa antipatia e repugnância no seio mais amplo das igrejas evangélicas. Por exemplo, a Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda (PE), ordenou uma pastora lésbica no último dia 28 de fevereiro. A Convenção Batista em Pernambuco já tomou as providências para que a igreja seja excluída do seu quadro de filiadas. Em 2022, a Igreja Betesda em São Paulo, liderada pelo pastor Ricardo Gondim, se declarou como uma igreja afirmativa e inclusiva. As críticas foram imediatas e incansáveis. Em 2020, o pastor Ed René Kivitz, foi rechaçado e cortado da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, por afirmar a necessidade de atualização e revisão bíblica ante a condenação de homossexuais.
Proliferam casos de desligamento e menosprezo a igrejas e pastores que decidem por essa pregação extensiva que não entende como pecado as expressões afetivas, independente da orientação sexual e da identidade de gênero, mas percebe nessa expressividade uma dádiva divina. Por isso mesmo, as igrejas inclusivas acolhem aquelas pessoas discriminadas e vítimas de preconceito social e religioso devido ao gênero e sexualidade. Esse tipo de oportunidade é visto majoritariamente como sacrilégio, perversão, profanação, transgressão e violação da vontade divina. Mas será que é essa mesma a preocupação fundante? Por que há esse aborrecimento destoante e sobressalente especificamente diante disso? Pensemos sobre esse assombro que acomete diversas pessoas que se deparam com essa proposta de comunidade.
É fato que nossas sensibilidades são seletivas e passam fundamentalmente por construções e experiências acumuladas. Há muito investimento intelectual para desvendar os mecanismos que tornam possíveis essas percepções, na medida em que são individuais e coletivas ao mesmo tempo, ainda que não do mesmo modo. Nossas apetências e desgostos, interesses e denegações não procedem exclusivamente de nós mesmos, mas são produzidos, são construções complexas. Aquilo que nos causa repulsa não é puramente da ordem da natureza e, com isso, a irritação ou aceitação de certos comportamentos também são adquiridas. Pensando nisso, é possível entender, ou ao menos situar um pouco melhor, o fato de que somos bastante tolerantes com algumas situações e não suportamos outras. Diante de alguns acontecimentos somos combativos e ferozes e diante de outros somos extremamente receptivos e afetuosos. Assim, mesmo os valores morais não escapam desse caráter seletivo, arbitrário e construído. A hierarquização valorativa dada aos fatos da vida evidencia critérios subjetivos e coletivos. Participar de um grupo social, como uma igreja, produz um tipo de seleção das coisas que é marcado por aquilo que se é ensinado a aceitar ou não. O crivo precisa ser percebido mais de perto.
Não se vê, geralmente, reclamações contra lideranças que recitam textos bíblicos com clara finalidade de manipular a fé dos crente aos seus interesses. Poucos ficam embaraçados com pastores cometendo crimes antidemocráticos e empunhando o livro sagrado. Não é tão problemático saber que muitas pessoas foram excomungadas das igrejas por escolhas pessoais das lideranças, enquanto outras são tratadas com parcialidade oposta. Não é um problema tão grave o financiamento que comunidades religiosas fizeram aos atos golpistas de 8 de janeiro. Nem é importante se há desvio do dinheiro arrecadado nas reuniões para uso completamente alheio à finalidade da religião. Nada a dizer sobre o mal-uso das contribuições dos fiéis que deveriam cuidar dos necessitados. Nada contra os pastores que lucram com a fé, tornando-se milionários às custas do dinheiro que as pessoas oferecem como sacrifício e oferta a Deus. É insignificante o fato de que o nome divino seja blasfemado e utilizado de modo vão, banal, escuso e desrespeitoso. Não há qualquer julgamento de pastores que mentem para as comunidades tendo em vista vantagens pessoais. Nada a dizer de profetas que se dizem representar a voz e a vontade divinas, quando na verdade só falam de si mesmos, com um narcisismo, arrogância e farisaísmo que enojam. Nada a questionar em relação a líderes que possuem vidas secretas de adultério, muitas vezes com ovelhas do próprio rebanho. Nem é necessário reclamar de mentiras proferidas em nome da fé, pois os ungidos não podem ser contestados. Poucos se importam com se esses guias religiosos praticam violência doméstica contra esposa e filhos, mas durante os cultos se apresentam santificados. Nada contra quem se mantém no topo da fama traindo companheiros de jornada, pois é preciso alcançar e conservar o sucesso ministerial a qualquer custo.
O problema mesmo são os pastores que abrem as portas de suas igrejas para receber com amor todas as pessoas, sem a hipocrisia que finge acolher para depois forçar uma transformação aos padrões esperados. E os mesmos que se silenciam diante de todos os recorrentes acontecimentos escabrosos citados acima, vociferam raivosos contra um pastor ou igreja que se declara respeitoso às diversas identidades de gênero e orientações sexuais, para além do binômio tradicional que divide a humanidade invariavelmente entre homens e mulheres. São esses mesmos que tratam como sinal de apostasia qualquer questionamento sobre a correspondência automática do dualismo sexual com os gêneros masculino e feminino, por exemplo, como se fosse exclusivo a um deles ser referido a homens e o outro a mulheres. As críticas e alardes se tornam constantes e ácidas, pois esses pastores e igrejas são vistos como desviantes e heréticos. E se a preocupação fosse mesmo com o texto sagrado, os pregadores da mentira em nome da fé seriam condenados, ao invés de venerados. Nessa seletividade, apenas o ato de amar é pecado…