Ruah é uma palavra feminina usada nos textos bíblicos para se referir ao Espírito Santo, mas significa literalmente “vento”, “sopro” e “espírito”. Aprendemos com os hebreus em sua caminhada de fé, em meio a vivências diversas das nossas, e que viam nas andanças da história e suas transformações a manifestação do seu Deus; que as emoções divinas são o motor ou o fio condutor da história. Sim, um Deus que é movido pelo seu amor, pelos seus “entranháveis afetos”, é uma das lições mais belas que o texto bíblico, especialmente o Evangelho nos ensina.
Não há como negar que a imagem materna da divina Ruah é linda, poderosa e cheia de significados afetivos! Podemos perceber que esse Espírito transbordante de vida, feminina como a respiração universal, a força motora do próprio Deus, chocando como uma galinha é o terreno fértil de onde brotam todas as maravilhas criadas em todos os universos e mundos possíveis, multiversos que vemos ou não… Esse Espírito está sempre presente, tecendo as redes da vida, nutrindo de seiva tudo que é gerado e nasce, levando pela mão a criação do seu nascimento até a sua plena consumação.
Todos os que foram cheios desse sopro vital pautaram suas vidas pelos princípios da denúncia da opressão, da desigualdade e da injustiça, e não somente isso, também viveram para descortinar o anúncio do reino de paz, justiça e alegria que seria inaugurado com o Messias e continuado por nós. A isso chamamos profetismo!
E quanto a nós, filhos de Pindorama? O que temos a dizer sobre isso? Como falamos sobre a divina Ruah em sua atuação desde a criação até as revoluções silenciosas (ou não) na nossa mátria, América Latina, especialmente em tempos tão delicados politicamente?
Relembre os profetas e as profetisas dos quais temos notícia nos dois Testamentos, nossos ancestrais espirituais que deixaram como memória a consciência plena de que o fogo que aquece, brilha e ilumina não pode ser extinto, mesmo na noite mais escura.
Falar sobre a Ruah é falar também sobre o sopro e inspiração que permite que tenhamos habilidade para administrar com justiça os recursos que dispomos, para que também possamos trabalhar pela promoção da vida e não só isso; é a Ruah quem faz com que sejamos capazes de produzir arte para que o mundo não se desencante diante de nós.
É a divina Ruah quem permite que tenhamos janelas sempre abertas e olhos que enxergam a poesia e a beleza da Eternidade na vida diária, no pão com café das manhãs, no presente que recebemos graciosamente quando vemos uma semente brotar e virar alimento, no arroz quentinho na panela, nos beijos de amor. Quanta riqueza, minha gente! Quantas dádivas recebemos através da Ruah, mãe, generosa, Pachamama que nos impulsiona para o novo, para a revolução do bem viver que nossos povos originários nos ensinam a tantos milênios. Ailton Krenak em “A vida não é útil” nos faz uma provocação muito pertinente:
Ao ler isso, imaginei um diálogo onde esse irmão indígena, latino-americano e contemporâneo nosso conversa ao pé do fogo numa noite estrelada com Hildegard von Bingen, santa alemã, mística medieval e doutora da igreja que viveu no século 12. Nessa conversa imaginária, ela diz a ele com toda sabedoria: “Ailton, não se aflija pois o Espírito é ‘vida da vida de toda criatura’”.
Você pode estar se perguntando o que isso tem a ver conosco nesse mundo pós pandêmico, num país onde tantos parecem não se importar com as causas urgentes da vida. O que isso tem a ver com quem pega transporte público lotado para trabalhar, que tem as mãos feridas por cultivar a terra, faça chuva ou sol, que precisa contar cada moeda no fim do mês para pagar as contas?
Venho através dessas palavras, relembrar A Boa Notícia: saiba que a divina Ruah conta conosco para se mover, ser reconhecida e virar potência revolucionária nesse mundo! Lembre-se do movimento dos seguidores de Jesus que, ao invés de separar pessoas a partir de rótulos e supostas diferenças, foi levado pela Ruah-vento-fogo-Espírito que, descendo sobre um grupo de gente absolutamente diversa, fez com que uma nova irmandade pudesse nascer. Na comunidade da fé, unida pelo Cristo vivo no corpo de cada um que caminha com Ele, precisamos de todos juntos para aquecer o coração e colocar brilho nos olhos, para lutar para que todas as vozes possam se levantar em denúncia da opressão e para que nossas ações sejam comprometidas com o anúncio da libertação, como nos ensina a teologia nascida no chão da América Latina, tão diversa e potente, inconformada com as desigualdades sociais e cheia de doçura poética também.
E quanto aos dons e habilidades de administrar os recursos que são de todos para que não haja falta, para que haja democracia, paridade, equidade? E quanto ao coração que fomenta a arte… as mãos artesãs… o canto que tange as cordas cósmicas? Sim, até nisso a Ruah nos presenteia e é por isso que podemos dizer sem medo que toda vez que as engrenagens do mundo são movidas por uma força encantada e silenciosa para que a humanidade, unida, como irmãos e irmãs, caminhe um passo de cada vez na direção dos ideais do Reino que são paz, justiça e alegria.
A cada vez que a revolução silenciosa do Evangelho nos faz desejar lutar pela verdade no nosso país, sempre que em nossas mesas temos alimento e afeto para compartilhar, sabendo que habitamos temporariamente a Casa Comum e por isso nada é nosso, vemos então a Ruah diante de nós, nos conduzindo amorosamente pela mão e nos levando como mãe cuidadosa.
Ela já estava movendo os ciclos que favorecem a vida desde antes de chegarmos a esse planeta e segue fortalecendo nosso corpo na resistência frente a tudo que ameaça a vida, a diversidade e a felicidade para o qual fomos chamados no Cristo libertador. “É preciso estar atento e forte”, já cantavam os Tropicalistas, por isso termino com uma singela oração: “Ruah seja tudo em nós – criadora, profética e generosa em dons.”
Sigamos juntos!
[1] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
[2] GIL, Gilberto e VELOSO, Caetano.” Divino maravilhoso”. In ___. Gal Costa, Philips,1969, Faixa 2, lado B.