“‘Nós vamos lutar!’: Breve nota sobre a violência do Marco Temporal”, por José Edilson Teles

Jesuíta – Dizem que não querem deixar a Missão, é seu lar.

Bispo – Devem se submeter à vontade de Deus. Diga-lhes!

Jesuíta – Dizem que foi a vontade de Deus de saírem da selva e construírem a Missão. Não entendem porque Deus mudou de ideia.

Bispo – Não ouso entender as razões de Deus.

Jesuíta – Como sabe qual a vontade de Deus? Não crê que o senhor fale por Deus, mas sim pelos portugueses.

Bispo – Não falo exatamente por Deus. Falo pela Igreja que é um instrumento de Deus na Terra.
 
Jesuíta – Fale com o rei de Portugal

Bispo – Já falei, ele não atenderá.

Jesuíta – Diz que também é rei e não atenderá. Dizem que erraram em confiar em nós. Eles vão lutar. 

O diálogo acima foi extraído do excelente filme A Missão, de 1986, dirigido por Roland Joffé e estrelado por Robert de Niro, Jeremy Irons e Liam Neeson. O longa-metragem retrata a tentativa dos missionários jesuítas de converter os guaranis nas fronteiras do Paraguai e Brasil, no século XVII, cujo objetivo era fundar um projeto missionário nestas terras. A questão gira em torno das disputas políticas dos colonizadores portugueses e espanhóis pelo território guarani, onde foi estabelecida a missão jesuíta, colocando os missionários numa situação tensa ao buscar uma solução pacífica para o conflito. O diálogo supracitado se dá entre o Bispo líder dos padres jesuítas e o “chefe” guarani, traduzido pelo padre Gabriel (interpretado por Jeremy Irons). Contudo, não pretendo frustrar a experiência dos que ainda não assistiram ao filme (o famoso spoiler), mas tomar essa cena como ponto de partida para apresentar uma breve reflexão sobre os pressupostos violentos do Projeto de Lei 490/07, conhecido como “marco temporal”. Esse texto é, pois, um ato político: aqueles que se comprometem com a justiça social neste mundo – o único mundo, diga-se – não podem naturalizar essa “tragédia” histórica sob o risco de contribuir com sua repetição em forma de “farsa” – como diria Marx ao reformular a frase de Hegel acerca de fatos e personagens históricos.

Assim, tanto os interesses dos colonizadores retratados no filme A Missão quanto os interesses ruralistas do PL 490/07 procuram restringir a demarcação de terras indígenas. No caso do Projeto de lei, restringir àquelas terras tradicionalmente ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Caso aprovado em todas as instâncias político-jurídicas, as terras ocupadas após essa data ou em processo de reconhecimento por parte do Estado perderiam o efeito de posse “legal” – com eminente risco de conflitos. Em 30 de maio de 2023, em articulação relâmpago que beneficia a “bancada ruralista”, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do PL 490 com 283 votos a favor do projeto e 155 votos contrários. A lista dos votos favoráveis nos indigna, mas não nos surpreende: são os mesmos envolvidos em diferentes pautas reacionárias, conservadoras e extremistas. Cada 283 “sim” sentencia a repetição do genocídio dos povos originários, verdadeiros donos da terra! Cada “sim” é cumplice do sangue derramado sobre o solo ao longo da história, “tragédia-farsa” que se repete. O trocadilho hobbesiano “o lobby ruralista é o lobo do homem” não seria exagero.

Aprovado na Câmara, o PL 490 segue para análise do Senado Federal. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar em junho de 2023 o julgamento atualmente empatado entre um voto contrário, do ministro Edson Fachin e um favorável, de Nunes Marques. Em seu voto, Fachin argumentou que a tese do marco temporal é inconstitucional e não pode restringir o direito dos povos indígenas. O voto de Nunes, por sua vez, ignora o violento processo histórico de invasão das terras indígenas em nome de uma pretensa “pacificação” com os invasores. O argumento de Nunes procura deslegitimar a “posse imemorial” da terra por parte dos povos indígenas, mas nas entrelinhas – ou, melhor, explicitamente – é condescendente com a “expansão ilimitada” dos empreendimentos colonizadores de ruralistas-grileiros. Só falta acusar a vítima de merecer o esbulho (espoliação), pois quem mandou não ter os interesses do colonizador.

O diálogo do filme, com a qual iniciamos, é reprisado em looping – a velha repetição do mesmo. O projeto de catequização universal dos missionários jesuítas e os interesses expansionistas empreendidos pela coroa portuguesa e espanhola voltam a se repetir sob novas camadas. Aos olhos dos jesuítas, a conversão dos guaranis representava uma transição para participação no projeto de “humanidade” do colonizador; aos olhos dos mercadores portugueses e espanhóis, os guaranis não seriam “humanos”, mas “selvagens”, legitimando sua “superioridade”. Esses projetos reacionários continuam a se repetir duplamente na forma de “tragédia” e “farsa”: a primeira como mediadores do “projeto de humano” e a segunda como mediadores do “projeto de moderno”, ambos universais. O que há em comum em ambos os projetos? O genocídio e o etnocídio: a eliminação física-territorial e simbólica do outro. Reitero: não podemos naturalizar a repetição dessa “tragédia-farsa”. É preciso dirigir aos ruralistas e reacionários de ontem e de hoje a frase lapidar dirigida ao Bispo: “vocês não falam por Deus, mas por vós mesmos – nós vamos lutar!”. Esse texto é, pois, um ato político.  

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