As visões de mundo do camponês hebreu e mesmo do judeu do início da era comum eram diferentes das cosmovisões cristãs modernas. Talvez, o que de maior temos a aprender com hebreus e judeus é que a profundidade do texto é a sua humanidade.
Ao mergulhar nessa humanidade temos, então, a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de três maneiras: a acadêmica, o senso comum e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco.
Quando o intelectual judeu Samuel Cahen fez a primeira tradução das Escrituras judaicas para o francês, entre 1831 e 1851, em dezoito volumes – A Bíblia, novas traduções – procurou ir além das traduções anteriores, cristãs. Sua tradução, em edição bilíngue, trouxe para o leitor não judeu a estrutura hebraica, as construções literárias e os hebraísmos. No século passado, seguindo a tradição de Cahen, André Chouraqui construiu uma tradução enciclopédica (1974-1977): a partir de exegetas como Rashi e Ibn Ezra fez a leitura oriental dos textos do testamento judaico.
Ao compreender com os antigos exegetas judeus que a humanidade do texto é o caminho para o encontro possível com o transcendente, vamos, como exercício exegético, analisar dois versos de estórias e momentos diferentes das Escrituras judaicas. Não podemos esquecer, porém, que a escolástica teorizou modos de ler o quadrivium, conceito derivado da junção de duas palavras latinas: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim na leitura de um texto quatro vias: literária, pedagógica, teológica e escatológica. Quadrivium é encruzilhada e foi utilizado como hermenêutica por Hugo São Vitor e Tomás de Aquino. Mas, hoje, nas nossas leituras estamos interessados no sentido literário dos textos.
Uma joelhada no saco
“Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25).
O primeiro verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem – a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. A tradução SEV (versão de 1569) diz: “Y cuando el varón vio que no podía con él, tocó la palma de su muslo, la palma del muslo de Jacob se descoyuntó luchando con él”. É uma boa tradução, porque a expressão palma “kaph” se refere à cavidade ou parte do corpo que é dobrável ou curva, e “yarek” que foi traduzido por “muslo”, se refere a lombo, ou lugar do poder de procriação.
Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão Esaú ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula sua força.
Terminações nervosas, sensibilidades. Escroto, testículos. O chute produz sangramento interno, inchaço, dor. O músculo se retrai, nervos e artérias se enroscam e impedem o fluxo de sangue. O coice foi bravo, a cápsula se rompe e vaza.
Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo e por baixo. Caído, resfolegando, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrou ao tornozelo do irmão, se levanta: foi alforriado, está livre para seguir em frente.
O gozo em rosa
As escrituras judaicas contêm uma joia da literatura oriental: o Cântico dos cânticos. O superlativo não existia no hebraico, daí a ideia do mais bonito dos cânticos. O poema conta uma história de amor entre uma moça negra, a Sulamita, e um pastor.
Para os cristãos, não estamos diante do erotismo oriental, mas de uma alegoria sobre o amor transcendente do eterno. Agora, porém, nos interessa o caminho que o poema faz na materialidade do erótico humano. Por isso, vamos trabalhar apenas um verso do Cântico dos cânticos, procurando manter viva a expressão e seu conteúdo aparentemente não religioso.
“Entra na casa do vinho, o seu estandarte é desejo”. (Cântico dos cânticos 2.4).
Temos no verso em hebraico o verbo “bow” ir para dentro, entrar, que está no grau hifil, causativo, no modo perfeito; a expressão metafórica “bayith yayin”, casa do vinho; “degel”, bandeira, estandarte; e “ahabah” que expressa prazer, desejo sexual. A Vulgata de São Jerônimo traduz assim: “introduxit me in cellam vinariam ordinavit in me caritatem”. A tradução italiana de Diodati (versão de 1649) diz: “Egli mi ha condotta nella casa del convito, E l’insegna ch’egli mi alza è: Amoré”. E a tradução SEV de 1569, diz: “Me llevó a la cámara del vino, y puso su estandarte de amor sobre mí”.
Estamos diante de um poema oriental. A expressão “casa do vinho”, em seu sentido literário, não deve ser tomada literalmente, mas seguindo tradições orientais antigas – e também portuguesas – é uma metáfora, ao modo de “adega do vinho” ou “casa rosada”, entre outras.
Até o final do século XIX, a moral estabelecia que arte e literatura eram ofensivas aos costumes quando recorressem à sexualidade ou a linguagem incluísse termos licenciosos. Em tais casos, arte e literatura eram consideradas eróticas ou pornográficas, já que não se discerniam os termos. Hoje, entendemos erótico como relativo ao desejo sexual ou que aborda o amor sexual, e pornográfico como aquilo que descreve ou evoca luxúria.
Como muito desses sentimentos dos oitocentos ainda têm raízes profundas na cultura, o verso acima é canto que choca a mentalidade ocidental, pois a Sulamita, a jovem do Cântico dos cânticos, diz que seu amante a penetra quando ela está menstruada. É o tempo do durante, da casa do vinho, do gozo em rosa. E, assim, a regra da menstruação enquanto tempo de impureza, presente no livro de Levítico (15.19), é derrubada pela relação do casal. Não há nenhuma crítica ao ato, que ela apresenta como uma opção que nasce do desejo.
E falar de desejo nos remete a um pequeno trecho de outro texto clássico da literatura oriental, as Mil e uma noites – Alf Lailah Oua Lailah – uma coletânea de textos árabes, persas, hindus, siríacos e judaicos. Os contos mais antigos remontam ao século XII no Egito. Mas agora nos interessa a relação do filho do mercador Ghânim e a favorita do sultão, Qût al-Qulûb.
O filho do mercador e a favorita do sultão enfrentam a intermitência do desejo, mas no verso 2.4 do Cântico dos cânticos a Sulamita e seu amante estão em modulação unissonante: é pra ser, prazer, parônimo.
Entendemos melhor a presença do erótico nos textos orientais antigos quando lemos Michel Foucault na História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Para ele, no Ocidente, existem dois procedimentos diante do bem e do mal do sexo. Um procedimento desconfiado diante das culturas romana antiga, chinesa, hindu, japonesa e árabe, que desenvolveram uma ars erotica. Tal arte tira sua verdade do próprio prazer, entendido como experiência onde não há lugar para proibições, mas também do prazer que pode ser medido pela tesura do corpo e do espírito. Essa arte erótica é experiência e seu conhecimento não tem como ser transmitido pelo discurso. Sua força está no símbolo.
A cultura ocidental não construiu uma ars erotica, por isso o outro procedimento nasceu de uma scientia sexualis, que gera regras para definir o bem e o mal do sexo. Assim, a sexualidade ocidental é, predominantemente, resultante de um discurso constituído em scientia sexualis, que a religião sacralizou para produzir a verdade sobre o sexo.
O erotismo está presente nos textos antigos, no Cântico dos cânticos e nas Mil e umas noites, porque é dimensão da sexualidade lida através da ars erotica. Mas é olhado com desconfiança pela moral que repousa sobre a scientia sexualis. Eros é expressão humana e assim deveria ser visto pelos exegetas que se debruçam sobre textos orientais da ars erotica.
Ou seja: o verso 2.4, analisado na profundidade do humano, nos fala de desejo, atributo da espécie, que nasce da capacidade de pensar o prazer. A jovem do Cântico dos cânticos não nos diz que durante a menstruação tem mais vontade de transar, mas também não nos diz o contrário. Se é regra, se não é regra, não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho.