“Se eu quiser falar com Deus…”, por Claudio de Oliveira Ribeiro

Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que, ao findar, vai dar em nada […]
Do que eu pensava encontrar.
(Gilberto Gil)

Há imagens que marcam nossa vida. Duas delas, por motivos distintos e não facilmente explicáveis, vieram nestes dias como onda impetuosa em minha mente e coração. Ambas me reportam ao mar, com a sua imensidão, mistério e profundidade. A primeira foi de anos atrás, quando eu me recuperava de uma delicada cirurgia cardíaca, situação-limite à qual muitas vezes me refiro nas reflexões que faço. Naqueles dias, pude desfrutar de momentos prá lá de significativos diante dele, com os pés roçando na areia, sentindo o vento no rosto e ouvindo o sussurrar das ondas. Foi um mês inteiro gozando de um tipo de banho de existencialidade e contemplação, com oportunidades diárias de olhar todo aquele vasto céu azul, que, no encontro das águas, lá naquele belíssimo horizonte, me possibilitava esvaziamento, integração cósmica e um sentimento de êxtase e de profunda revisão e valorização da vida.

Ali, na beleza da Criação, no “azul da cor do mar” – para não esquecer o meu queridíssimo Tim Maia –, eu me esvaziava, me exauria e me reconstruía. Certamente, tantas outras pessoas tiveram experiências similares, e é tão bom relembrá-las! Ao tentar me traduzir, comecei a ouvir vozes, como as da bela canção de Gilberto Gil:

Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Como frequentemente faço, rememoro as palavras do teólogo Paul Tillich – tão fortes e inebriantes para mim – que, em sua autobiografia, realçou o impacto que as primeiras vistas das ondas do oceano causaram em sua vida. Ele narra que, quando estava diante do mar, sentia os mistérios e a profundidade do cosmo vindo inteiramente no vagar das ondas e percebia que penetravam na dimensão mais íntima e visceral dele. Assim, as ondas da fundura da vida se misturam com as da interioridade humana. Lá, no mais íntimo de cada ser, tudo é recriado, revisto, redimensionado. E o movimento é contínuo e processual. Para Tillich, as ondas já existentes dentro de nós, uma vez sacudidas pela força das outras que nos invadem, saem robustas de volta para o mar e se reencontram com a profundeza do universo e dos destinos. Será isso verdade?

O filósofo André Comte-Sponville nos lembrara que “estamos no Todo e ele, finito ou não, nos ultrapassa (vai além de nós) em toda direção: seus limites, se ele tem algum, estão permanentemente fora do nosso alcance. Ele nos envolve, nos contém, e nos excede”. É uma transcendência inexaurível, indefinida e ambiguamente imanente, com fronteiras sinuosas e limites incertos e inacessíveis.  

A outra imagem me ocorreu anos depois naquela mesma praia. Foi quando acordei com uma forte lembrança de minha mãe, dona Cleusa, que, naquele dia, se estivesse entre nós, completaria 81 anos de vida. Ao sair para caminhar no mar, dentro das mesmas águas tranquilas e cristalinas da Lagoa de Araruama, avistei, como de costume, um grupo de hidroginástica. Minha mãe participava dele com muito entusiasmo, e todas as vezes que o vejo não tenho como não me lembrar dela.

Naquela oportunidade, ao passar por aquelas pessoas, fui cumprimentado pelo professor, que falou emocionado sobre ela e sobre o meu pai, Sr. Manoel, que também havia partido. Ali, à vista dos participantes, cerca de vinte ao todo, trocamos impressões muito legais dos meus “velhos”. Ele disse, por exemplo, que o pai era seu companheiro de natação (mal sabe que ficávamos atônitos de medo ao vê-los bem longe no mar). Falamos também de minha mãe, que criou a mim e a minha irmã Eliana com muito cuidado, nos ensinou a ler e a escrever. Além disso, ambos nos ensinaram a buscar a justiça e a sermos solidários diante da fragilidade e do sofrimento das pessoas. Sempre eu os encontro em sonhos e lembranças. 

Foi como um ato celebrativo e redentor! Memória comunitária, coletiva, costurada por singulares lembranças, tendo como companhia as águas na cintura moldando nossos corpos. Foi também revisão da vida, redimensionamento de valores, tentativa de equacionamento de ambiguidades, contradições, falácias. Pois…

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou

Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

E segui andando dentro d’água. Feliz! É como ouvisse: “Corações ao alto”. E repetisse: “O meu coração está em Deus”. Continuei caminhando no mar, e as imagens vinham e voltavam aceleradamente. Cercado pela belíssima vista que nos emoldurava, e com o coração inundado de lembranças, comecei a chorar. Um sentimento misturado: saudade, tristeza, alegria, gratidão, desejo de estar com eles… Choro intenso. De criança. Ao meu lado, Magali, minha esposa, com a ternura de sempre, soube silenciar e, ao mesmo tempo, dizer palavras sábias. Ela soube se distanciar e ficar bem junto. Amorosamente sugeriu que, depois do choro, eu mergulhasse naquelas purificadoras águas, e assim o fiz. Emergi ressurreto. Feliz, consolado, restaurado e grato pelo dom da vida. Um êxtase espiritual, livre. Lembrei-me das palavras de Jesus que revelava serem “felizes os que choram porque serão consolados” (Evangelho de Mateus, 5.4). Mais uma vez, ecoou a canção:

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz

Durante boa parte do dia, fiquei com aquele gosto na boca. Saudade esperançosa, que me levava a me esvaziar, a me despojar, como experiência quenótica integradora e libertadora.  Comte-Sponville também dissera:

Que alívio quando o ego sai do caminho! Nada resta, exceto o Todo, com o corpo maravilhosamente dentro dele, como se restituído ao mundo e a si mesmo. Não resta nada, exceto aquele lugar enorme para estar, a natureza e o universo, sem restar ninguém dentro de nós para ser aterrorizado ou tranquilizado. 

Daí fiquei pensando em tanta gente que não vive e nem deseja as espiritualidades religiosas, na maioria das vezes cheias de racionalismos, formalidades e moralismos. Pessoas que buscam mergulhos mais profundos, que reavivem a alma, que abalem as existências, que deem sentido mais amplo a tudo o que está ao redor. Sonhar em outras direções. Livres, libertos, autônomos, sem as amarras do dinheiro e do poder que povoam a nossa mente, sem as autoconfianças exageradas ou egocentrismos mórbidos. Talvez, por isso e por tantas armadilhas falaciosas que inventei…

Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho

Provocados pela mesma canção, seria oportuno indagar se é possível mergulhar nessas águas para que corpos novos e surpreendentes imagens possam emergir:

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas prá segurar
Sem cordas prá segurar

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