“Lula, o presidente dos cristãos”, por Delcides Marques

Os evangélicos vêm recebendo as maiores investidas eleitoreiras nesses meses que antecedem outubro. Eles se tornaram um grupo relevante para os rumos das eleições no país. Um dos motivos é que eles foram extremamente decisivos no resultado das urnas em 2018. Outra razão se refere ao percentual de eleitores evangélicos ainda pendendo para o atual presidente, num cenário bastante desfavorável à sua reeleição em outros grupos e perfis de eleitores. O clichê bolsonarista, “Deus, Pátria e Família”, também é um dos fatores que torna possível e mantém a afinidade dos evangélicos com Bolsonaro. Além disso, citar texto bíblico como legenda política também contribui efetivamente: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. O fato de sua atual esposa ser evangélica e discursar em sua defesa, valendo-se de linguajar religioso, também tem um peso significativo.

E ainda que o próprio Bolsonaro tenha se declarado sempre como católico, ele é visto como simpático aos evangélicos, tendo inclusive sido batizado pelo pastor Everaldo, preso por corrupção e lavagem de dinheiro. Esse batismo pede um parêntese. Como Bolsonaro não tem compromisso com nada efetivamente, nem é o caso dele ter considerado o Código de Direito Canônico: pois, se vale apenas um batismo e ele foi batizado duas vezes, ou ambos são invalidados, ou o segundo não vale, ou o segundo invalida o primeiro. Enfim, uma querela para os teólogos, pois Bolsonaro não faz a mínima questão de respeitar seriamente qualquer dessas tradições religiosas. Sua preocupação está na ordem da conveniência.

Voltemos, de todo modo, ao raciocínio anterior. Parte do fetiche evangélico pelo capitão da reserva, assumidamente admirador de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um terrível torturador nos idos de 1970, está também atrelada às falsas notícias que circulam nas inconsequentes redes sociais. E muitas das mentiras veiculadas são alardeadas por lideranças eclesiásticas absolutamente irresponsáveis. Dentre tantas falsas mensagens espalhadas por pregadores de mentiras há uma que merece atenção aqui e foi divulgada pelo Deputado Pastor [sic] Marco Feliciano, cujo aparecimento ocorre sempre em momento oportuno aos embustes perniciosos de estelionatários da fé claramente mal-intencionados, ou seja, ocorre sempre durante as eleições presidenciais. Vejamos um caso em particular desse aproveitador.

Ele usou sua conta no Twitter para dizer: “reitero que tenho receio que um governo Lula persiga os evangélicos” (18 de agosto de2022, às 12:19). Curioso que ele mesmo desmentiu sua mentira nas eleições de 2010: “Como um papagaio, eu repetia: o PT vai fechar as igrejas do Brasil. Oito anos atrás, Lula era um demônio. Mas Lula foi eleito e nenhuma igreja foi fechada. O país cresceu”. São tantas idas e vindas desse pregador, que apenas interesses escusos tornam possível compreender tais variações de posicionamento. De todo modo, essa acusação a Lula é o retorno do fantasma de 30 anos que causou pavor entre os religiosos de então, ao se propagar a imagem de um comunista que fecharia as igrejas no Brasil, caso eleito, o que culminou no vínculo evangélicos-Collor.

A verdade deve ser conhecida. De todos os governos, incluindo o atual, o governo Lula foi de fato o mais benéfico aos evangélicos em toda a nossa história democrática. Ou seja, Lula fez mais pelos evangélicos do que o aclamado Bolsonaro que, aliás, deixa um legado vexatório aos crentes. A herança do atual presidente aos evangélicos pode ser indicada em três curtos exemplos: a desonra de se fazer “arminha” em reuniões de culto e fé a uma divindade amorosa (ocorrendo até orações abençoando armas); a ginástica de justificar as bases bolsonaristas à luz (e contra a luz) do texto sagrado; e o escândalo da propina dos pastores do MEC. Mas voltemos à nossa tese: nenhum presidente fez mais pelos evangélicos do que Luís Inácio Lula da Silva, o sindicalista de origem nordestina.

No primeiro ano de seu governo, o ex-presidente Lula sancionou uma lei que fez correções jurídicas ao Código Civil, permitindo que as igrejas deixassem de ser simples entidades de classe, como clubes de futebol ou outras organizações não religiosas, e pudessem ter personalidade jurídica: “São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento” (Lei nº 10.825, de 22 de dezembro de 2003). Com isso, o governo Lula facilitou sobremaneira a abertura e o funcionamento de igrejas. A sua fala na ocasião foi: “Tem três coisas que demonstram que um país vive em democracia: a liberdade política, a liberdade religiosa e a liberdade sindical”. E avançou: “A partir de agora é livre o direito de criar uma igreja e praticar uma religião”. Tendo como arremate: “dizer àqueles que me difamaram, agora vão ter que pedir desculpas não a mim, mas a Deus e à sua própria consciência”.

De fato, Lula sempre defendeu a liberdade religiosa e, por isso mesmo, aos 27 de dezembro de 2007, sancionou a Lei nº 11.635 que passou a considerar 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Tratou-se de uma iniciativa do Governo Federal para destacar que não temos um dia para comemorar a tolerância, ainda ausente, mas para evidenciar o quanto estamos longe dela. É a defesa de um momento para reflexão sobre a intolerância de cada dia e um convite para o diálogo inter-religioso. Em tempos onde alguns discursos demonizam os outros e querem metralhar as diferenças, a proposição dessa data tem um caráter pastoral. É uma forma de tornar patente a necessidade da convivência respeitosa entre os diferentes credos e expressões de fé. Isso é o mínimo de civilidade que se espera num Estado Democrático de Direito. Isso é o mínimo de reciprocidade que se espera aos que estão preocupados em amar ao próximo: religião não se impõe, religião não se persegue.

Já em 2009, Lula consolidou o Dia Nacional da Marcha para Jesus (Lei nº 12.025, de 3 de setembro de 2009): “É instituído o Dia Nacional da Marcha para Jesus, a ser comemorado, anualmente, no primeiro sábado subsequente aos 60 (sessenta) dias após o Domingo de Páscoa”. Confiando que o evento fosse para Jesus, Lula sancionou. Mas até hoje a realização do evento se dá sob responsabilidade do casal Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, cheio de interesses próprios. O casal, aliás, chegou a ser preso por evasão de divisas. Ao viajar com dinheiro escondido na Bíblia, foram acusados de ocultar bens de origem supostamente ilícita. Mas os valores achados nas Escrituras eram irrisórios perto da fortuna que eles possuem, e que já foi noticiada pela Forbes. Mas lá estão eles fazendo a festa com o dinheiro dos fiéis, e justificando o adágio de que a fé é muito rentável no Brasil. Curiosamente, ainda, é nesse evento que têm ocorrido algumas das maiores aberrações à doçura da fé, tal como o revólver gigante em Vitória, no Espírito Santo. O que era para ser um dia dedicado a Jesus se tornou um bailado eleitoral e anticristão. E se nenhum presidente anterior havia participado do evento, Bolsonaro vai, discursa e é aplaudido. Isso tudo acompanhado e defendido por sujeitos como o milionário e midiático pastor Silas Malafaia. Talvez esse tipo de acontecimento indique onde pode ocorrer o fechamento das igrejas, pois elas parecem estar se tornando outra coisa, uma vez que essa hermenêutica desvirtuada compromete a própria finalidade da igreja que deixa de fazer sentido.

Vejamos, ainda, as últimas benesses do governo Lula aos evangélicos. Em 2010, ele mais uma vez os beneficiou, ao sancionar a lei que institui o Dia Nacional do Evangélico, a ser comemorado no dia 30 de novembro de cada ano (Lei nº 12.328, de 15 de setembro de 2010). Enfim, além de garantir a liberdade religiosa e o devido respeito aos religiosos, foi durante o governo Lula que houve enorme crescimento evangélico no país. Os dados dos censos do IBGE de 2000 e 2010 mostram que o total de evangélicos no Brasil subiu de 26,2 milhões para 42,3 milhões.

A memória às vezes é curta e seletiva demais para lembrar das coisas que realmente importam. Mas ainda é tempo de averiguar as informações, retomar os fatos, considerar a história, discernir as pregações e ativar a memória. Como diz o texto sagrado: “Quero trazer à memória o que pode me dar esperança” (Lamentações 3.21).

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