“É possível cruzar as fronteiras de mundos desiguais?”, por Claudio de Oliveira Ribeiro

(Parasita)

É PAU, É PEDRA, É O FIM DO CAMINHO
É UM RESTO DE TOCO, É UM POUCO SOZINHO
É UM CACO DE VIDRO, É A VIDA, É O SOL.
(“ÁGUAS DE MARÇO”, DE TOM JOBIM)

Foi impactante assistir “Parasita”, o filme sul-coreano, dirigido por Bong Joon-ho e ganhador do Oscar 2020. Saí do cinema com a cabeça girando, o corpo bambeando e com muitos outros “filmes”, reais e cinematográficos, em mente.

A estória mostra uma família pobre da Coreia do Sul que entra, não necessariamente da forma mais adequada ou eticamente correta, nos espaços de uma família rica. Mundos distintos e desiguais! Ki-woo, muito bem interpretado por Choi Woo-sik, é um jovem sem formação universitária, mas que domina bem a língua inglesa. Ele recebe de um amigo o convite/missão de dar aulas particulares de inglês para Da-hye, a filha mais velha do empresário Park (Lee Sun-kyun) e de Yeon-kyo (Cho Yeo Jeong), uma angustiada dona de casa, legítima representante das futilidades do “outro mundo”. O trabalho foi a porta de entrada de toda a família Kitaek, desempregados que viviam em uma precária casa num porão em Seul: Ki-Jung (Park So-dam), a filha, como suposta professora de artes e arteterapeuta, Kim Ki-taek (Song Kang-ho), o pai, e Choong-sook (Chang Hyae-jin), a mãe, todos com excelentes interpretações.

Os dois mundos estavam ali, se cruzando. Os “entre-lugares”, para lembrar o pensador Homi Bhabha, se tornavam efervescentes, atraentes, sedutores e disputados no denso e cativante jogo simbólico que o filme oferece. Ricos e pobres no jogo da vida. Sim! Os pobres, os mesmos que a Bíblia cristã recomenda que estejam sempre conosco (Evangelho de João 12.8). A suntuosidade e a artificialidade dos espaços domésticos da família rica contrastam com a crueldade da vida da que é pobre. Para quem acha que o capitalismo é uma beleza e que a Coreia do Sul está se enriquecendo porque é abençoada por Deus, como dizem as ideologias religiosas, vai ver que não é. Desigualdades, desemprego, desesperança. O filme revela a realidade. E o faz de forma similar ao livro bíblico do Apocalipse, que a língua inglesa criativamente traduziu por “Revelation”. Isto! Mostrar como é. Revelar o que está escondido. É como os antigos filmes das máquinas fotográficas que guardavam no escuro de suas películas a claridade das imagens. A ambiguidade da vida e dos sistemas de poder pode ser revelada. E o filme faz isso com maestria, em linha similar à dos premiados Coringa e o brasileiro Bacurau, que encantaram plateias com a subversão dos caminhos de justiça.

A canção “Metáfora”, de Gilberto Gil, me veio à mente logo no início do filme: “Uma meta serve para ser um alvo. Mas, quando o poeta diz ‘meta’ pode estar querendo dizer o inatingível”, especialmente pelas repetidas vezes em que o jovem Ki-woo ao se referia às coisas ao seu redor, excitado, dizia “isso é metafórico”. O filme, portanto, vai “para além de”. Assim como a vida e os nossos espaços, que também vão para “além de”. Marcados por subjetividades e contingências nossos passos vão criando situações, inspirando sonhos de atravessar fronteiras e desejos de “outro mundo possível”. Mas, o filme (e a vida não é diferente!) revela a crueldade e a violência internalizada em nós. Não romantiza os pobres, nem idealiza os ricos. Mostra mundos intransponíveis e inalcançáveis “porões” (e essa é uma palavra-chave do filme).

Foi nesse momento que eu pensei: Ah! Eu também tenho os meus ‘porões’ e abrigos secretos; todo mundo tem. E todos desejamos a claridade. Todos queremos uma “pedra da sorte”, como a mostrada no filme, marcada por mística (que gera a riqueza) e concretude (que produz a morte). Todos cambaleamos por inúmeros fascínios. Na hora, me veio a lembrança do outro verso da mesma canção: “Uma lata pode conter algo, mas quando o poeta diz ‘lata’ pode estar querendo dizer o incontível”. E, da mesma forma, os versos de Murilo Mendes, seu “Poema Espiritual”:

Eu me sinto um fragmento de Deus

Como sou um resto de raiz

Um pouco de água dos mares

O braço desgarrado de uma constelação.

O filme não nos deixa despregar os olhos da tela. Cada cena, uma expectativa, uma conexão com o que passa em nosso mundo “de verdade”, pontes com os nossos planos e valores. Kim Ki-taek, o pai pobre e espertalhão, que alterna sensibilidade humana e pulsões de violência, sabe que na vida os planos não são qualquer garantia, que não adianta fazê-los, e que as ondas vêm e os levam.

Parasita revela dois mundos divididos (é fato que sabemos que na vida existem muito mais do que “dois mundos”). Tudo é desigual e se interconecta. A chuva que é vista como “bênção” para a mãe burguesa é a mesma que destrói a moradia dos pobres. O fantasma que o inquieto Da-song, o filhinho rico, vê é deste mundo cruel mesmo. Tudo de alguma forma se encontra. Até mesmo as fantasias sexuais.

O filme me fez pensar em diversas direções. Em várias situações da vida, tanto as que eu enfrentei quanto as que pude testemunhar ou acompanhar, quando o limite se faz presente, nós podemos entender com maior nitidez o que o teólogo Paul Tillich, chamava de “transitoriedade da vida”. É bem verdade que ele se referia ao choque de transitoriedade da vida em geral, ligando-o às experiências cotidianas, mas que, uma vez vividas com intensidade, nos mostrariam o sentido mais profundo do viver. O choque de transitoriedade é sentido a partir de situações-limites da vida. Nesse sentido, não somente o encontro com a morte física da vida, como já vivi, é situação-limite, mas também a possibilidade de rever, em algum instante de experiência significativa, todos os fundamentos da vida. Refiro-me ao que ele chamou de the shaking of the foundations ou o abalar das estruturas. Aliás, este é o título de um belíssimo livro de seus sermões.

Em muitos sermões que Tillich escreveu, ele procurou mostrar que se estivermos na estabilidade e na tranquilidade do dia a dia não nos depararemos, de fato, com as nossas estruturas vitais. Nós somente as perceberemos quando formos sacudidos por experiências-limites, como ele mesmo denomina. Não se trata da morte, mas sim do limiar da vida, quando diante das situações-limites vivenciamos profundamente cada uma delas, nos damos conta de nossa finitude, de nossa limitação humana e dos recursos da terra, e também das possibilidades do abrir-se para o novo, para algo que realmente nos mova em direção ao futuro.

E no enredo do filme, para lá de real, existe o “cheiro dos pobres”. Esse é arrebatador! É o divisor de águas. É o incontrolável, o que “revela”, o que não permite falseamento do sistema. O cheiro do pobre enquadra e desestabiliza o rico. No filme e na vida. Destrói a sua arrogância, a lógica do “eu estou pagando”, desnuda sua pretensa “finesse” e humanidade.

E o empresário até parece gostar daqueles pobres, especialmente porque ele tem a ilusão de que eles não ultrapassam a linha que divide os seus mundos. Essa frase é marcante no filme: “não ultrapassar a linha”. Entretanto, quando ultrapassam, tudo desmorona para os dois mundos. Será este o nosso fim?