Inspirado num texto anterior, publicado no Profanum Boletim, “O medo das eleições, ou: Com que roupa você vai?”, comecei a refletir sobre esse momento tão triste que se abate sobre nossa nação, momento em que parece terem sido formados dois grandes grupos que se veem como inimigos, o que rapidamente me levou a pensar: “será que realmente somos inimigos?”.
À primeira vista parece que cada grupo de eleitores possui ideias muito distintas, o que faz o ódio crescer ainda mais: são famílias divididas, amigos perdidos, relacionamentos balançados, ideais que parecem inconciliáveis. O mais curioso é que muitas vezes essas pessoas que pensam de modo tão diferente nos parecem tão amáveis e acolhedoras que é difícil acreditar que estamos em lados tão opostos.
Que pesem as diferenças ideológicas, que certamente possuem consequências no dia a dia, principalmente em relação ao racismo, uso da violência, homofobia, etc., existe um substrato, uma base comum, que muitas vezes passa despercebida diante de tudo aquilo que nos parece tão óbvio.
Para ilustrar isso, lembro de um filme da década de 80 intitulado “They live”, em pt, “Eles vivem”. Na película, existe um personagem curioso que, nos créditos do filme, aparece como “John Nada”. Trata-se de um desempregado, sem nome, buscando algo para fazer. Mas “John Nada” acaba por descobrir alguns óculos que lhe permitem ver para além das aparências; ao colocá-los ele começa a perceber o que realmente está por detrás das propagandas, dos meios de comunicação: o imperativo do consumismo. Além disso, na verdade, um grupo de alienígenas é quem está levando as pessoas a consumir, gastar dinheiro, aceitar o status quo, sem realmente se dar conta do que está acontecendo.
Esse filme serve como uma poderosa parábola dos nossos tempos. Pode ser que, politicamente, estejamos em lados diferentes, tenhamos ideologias distintas. Para muitos é a religião, é a cor, é a raça que faz a separação, mas, na verdade existe algo que nos coloca todos no mesmo patamar: o imperativo do consumo que nos aprisiona.
A posição política pode ser distinta, um é de esquerda, outro de direta, outro de centro; na religião um é católico, outro protestante, um candomblecista outro kardecista ou mesmo budista; um é branco, outro negro ou amarelo; raças diferentes, gostos diferentes, diferenças e mais diferenças, mas lá no fundo, na raiz de tudo, o desejo de consumir, de ter, de comprar.
Estamos todos dominados pelo desejo de consumir, nos tornamos irmãos de consumo: uns consomem mais, outros menos, mas todos consomem. Para nós, isso parece natural, mas ignoramos que nem sempre as coisas foram assim. Nem sempre a sociedade vivia em função de consumir. Muitas sociedades, inclusive bem sábias como, por exemplo, as indígenas, ainda subsistem com o necessário para a sobrevivência, sem destruir a natureza e respeitando o seu ciclo – e, sem consumir, são felizes.
Por outro lado, a vida na sociedade capitalista tende cada vez mais à produção de bens, de desejos, tudo inventado para que possamos consumir e, ainda assim, estamos cada vez mais tristes.
Para satisfazer esses desejos, criados pelas propagandas e pelo marketing, cada vez mais os recursos naturais e as pessoas são exploradas. E, enquanto isso, alguns poucos estão ficando cada vez mais ricos. Só para citar o caso do Brasil, recentemente foi constatado que o número de bilionários cresceu, enquanto o de pobres e miseráveis aumentou, tudo isso em prol do lucro.
Na sociedade capitalista é necessário consumir infinitamente. Os bens não são produzidos para satisfazer as reais necessidades, mas apenas para que, por meio deles, se tenha lucro. Como explicar a especulação imobiliária? Como explicar casas e apartamentos a preços tão altos enquanto existem várias pessoas precisando de moradia? Como explicar a existência de tanta comida e tanta gente sem comer, morrendo de fome? Acima de tudo, como explicar a existência, no mesmo mundo, de bilionários e de pessoas que comem barro?
Vejamos a situação em dados, somente para o caso brasileiro. O homem mais rico do Brasil, Eduardo Saverini, possui um patrimônio de aproximadamente R$ 97,5 bilhões; depois dele temos outros chamados, super ricos como Paulo Lemann com R$ 96,5 bilhões, Marcel Herrmann Telles R$ 64,5 bilhões e Carlos Alberto da Veiga, R$ 49,5 bilhões; apenas esses três já detêm mais da metade da renda total do país. Na verdade, mais de 97% da população possui 3% de toda a riqueza do país, entre estes estão aqueles que possuem patrimônio de ao menos R$ 500 mil.
São dados aterradores. Como acreditar que tal situação é normal? O que poderia justificar tamanha desigualdade? Se pensarmos bem, mesmo aqueles que são classificados ou se veem como “classe média alta” estão muito mais próximos de uma pessoa em situação de vulnerabilidade social do que de um super rico. Poderíamos dizer que, na verdade, os super ricos que estão nesse topo da pirâmide são quase alienígenas, não? Quem vê Eduardo Saverini, Paulo Lemann ou Marcel Herrmann no seu dia a dia? No entanto, eles existem e eles detém mais da metade da riqueza do Brasil, sendo que, outros bilionários e milionários ficam com o restante do dinheiro, até que sobre apenas 3% da riqueza com os outros 97% nos quais estão incluídos eu e você, seja eleitor de Lula, seja eleitor de Bolsonaro, seja eleitor de qualquer outro candidato.
Poderíamos dizer que, na sociedade capitalista do acúmulo e do lucro, onde o que mede o valor de alguém é o dinheiro, quem seríamos nós que temos apenas 3% de toda a riqueza do país? Seria extraordinário dizer que somos “nada”?
Quero voltar ao nosso filme “Eles vivem”, lembrando principalmente do John Nada. Esse nome pode ser mais bem traduzido em português como “João Ninguém”, concordam? Não seríamos nós, em vista dos grandes ricos, uns Joãos Ninguéns? Contudo, apesar de sermos João Ninguém, nós, como o pária social do filme, podemos ver a realidade na qual estamos escravizados. Com os óculos da análise social da realidade, conseguimos perceber o que está por detrás da propaganda infinita, conseguimos ver que somos compelidos a gerar cada vez mais riqueza e consumir essa riqueza para esse dinheiro ir para a mão dos milionários, dos bilionários, dos mais ricos.
Diante disso, podemos concluir: quem realmente são os nossos inimigos? Somos tão distintos, nós trabalhadores que vivemos na ilusão de nos tornar algum Saverini, algum Lemann, algum Herman? Quando seremos milionários, bilionários? Quantos de nós seremos ricos? Talvez, no máximo, alguns de nós fará parte da pequena burguesia ou, como se diz, será um pobre gourmet, não sem antes, talvez, ganhar algum dinheiro às custas da exploração do nosso semelhante.
Por isso, antes de votarmos, talvez seja importante pensar em tudo isso. Existem diferenças, é claro, que devem ser marcadas: há quem apoie o golpe e o fascismo e há quem apoie a democracia, há quem apoie o preconceito racial e a homofobia e há quem defenda os direitos humanos, a igualdade racial e de gênero. Mas, em tudo isso existe também uma diferença de projeto de poder que afeta a todos os trabalhadores e eleitores que estão entre os 97% que detém apenas 3% das riquezas do país. Em um desses projetos se apoia declaradamente o capital, no outro se está do lado dos trabalhadores, em um desses projetos existe um lado que está a favor daqueles que ocupam o cume mais alto da pirâmide social e outro que volta o seu olhar ao interesse dos mais pobres. Se somos trabalhadores resta pensar que continuamos explorados, vivendo o mundo cão, vivendo para trabalhar, trabalhando para consumir e consumindo até morrer de trabalhar. Enquanto isso, os alienígenas, os super ricos, poderão viver até a “eternidade” sem trabalhar. Talvez seja hora de pensar: que sociedade queremos para nós? E, se temos inimigos, quem realmente são eles?