“De primeira-dama evangélica à primeira-dama de terreiro”, por Tabata Tesser

Nas eleições de 2010 o Brasil elegeu a primeira mulher presidenta do Brasil. A posse da economista Dilma Rousseff (PT) ao principal cargo executivo do país trouxe dilemas sociais para o sistema político brasileiro. No regime democrático, seria a primeira vez que o “cargo cultural de anfitriãs” ocupado por esposas de presidentes, nomeado de primeiro-damismo, se esvaiu. A função, que conta com nomeação no Palácio do Alvorada, dispõe de um imaginário social sobre qual deveria ser o papel das mulheres nos espaços políticos. Dilma, então, além de romper com este imaginário social, foi refém de um cardápio de violências políticas de relativização e rebaixamento, sendo alvo de um impeachment (golpe) misógino deflagrado por seus pares de composição eleitoral. 

De diferentes espectros políticos e diferentes análises sobre esta ocupação, o primeiro-damismo é analisado pela extensa literatura das Ciências Sociais. Se engana quem pensa que o imaginário social sobre as mulheres na política só serve para reforçar seus lugares na pasta da Assistência Social. O próprio termo “primeira-dama” busca repassar a ideia de “maternidade estatal” ao qual esposas dos eleitos passam a ser lidas como responsáveis pelas áreas do cuidado, atenção às crianças e pastas de solidariedade social. 

Este lugar de ocupação política direcionado a estas áreas ocorre pois há o estigma patriarcal acerca do papéis de gênero centrados nos afetos que estas mulheres nutrem com os governantes eleitos, onde se reforça características de domesticação do papel político que cumprem. As primeiras-damas são constantemente alvo da imprensa hegemônica com perguntas e comentários referentes aos seus corpos, escolhas de roupas, jovialidade e estilos de vida. 

Um caso emblemático envolvendo o reforço da domesticação privada é a reportagem de 2016 da revista Veja. Ao entrevistar Marcela Temer, esposa do ex-vice-presidente Michel Temer (MDB), a jornalista a nomeou como “bela, recatada e do lar”. A entrevista reforçou o lugar de inferioridade das mulheres, além de suplementar o tipo “ideal” de mulher brasileira ancorada nos valores da branquitude, magreza e elitização. No entanto, nas eleições de 2018 um novo elemento característico passa a ser um valor importante para mobilizar o papel social das primeiras-damas e animar o eleitorado feminino: a religião. 

Michelle Bolsonaro foi importante liderança pela vitória do presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2018. O prelúdio colocado naquelas eleições para a campanha bolsonarista era desmistificar a ideia de que Bolsonaro era anti-mulheres. Um desafio e tanto, uma vez que a imagem do candidato à presidência à época, encontrava-se assiduamente atrelada às falas como “não te estupro porque você não merece”, “tive cinco filhos e na quinta eu fraquejei, veio uma mulher”, além de homenagear o ex-coronel Brilhante Ustra, nacionalmente reconhecido por torturar grávidas com ratos na vagina durante o período de ditatura militar brasileira. 

Além de inserir a campanha de Bolsonaro no eleitorado feminino, Michelle foi importante para levar o candidato e marido de confessionalidade católica, até então, nos cultos das igrejas evangélicas ao qual tinha histórica relação. Michelle também teve importante protagonismo nas últimas duas semanas das eleições de 2018, onde realizou grandes reuniões com pessoas com deficiência, já que Michelle também fala na Língua Brasileira de Sinais. Estes dois elementos: foco no público evangélico, em especial o eleitorado feminino, e engajamento no tema das pessoas com deficiência, foram essenciais para fincar o papel de Michelle na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018. 

No discurso da posse, Michelle colaborou, em certa medida, no reforço ao papel e lugar privado das mulheres no espaço público. Decidiu dedicar seu discurso ao que chama de “chamado divino para proteção de crianças e trabalho voluntário”. Durante o governo, Michelle reforçou o lugar único e exclusivo das mulheres e mães na política como aquele da ação voluntária, além de tentar “humanizar” o presidente Bolsonaro (reconhecido por suas atitudes de macho alfa). 

Michelle presidiu o programa Pátria Voluntária, onde busca organizar o engajamento voluntário no país. Neste programa, Michelle se vestiu de branca-de-neve em uma ação de natal, organizou as idas de crianças no Palácio do Alvorada, coordenou entrega de cestas básicas para crianças de baixa-renda, entre outras ações. É importante recordar que a área de filantropia, voluntariado e assistência social no Brasil é atravessada por diferentes atores católicos e evangélicos (casas de acolhida, hospitais, centros de convivência e etc.). A inserção de Michelle na fundação do Programa Pátria Voluntária também serviu como engajamento e espraiamento do governo Bolsonaro nestes campos de filantropia religiosa. 

A filiação religiosa evangélica de Michelle foi um importante fator no governo Bolsonaro. A pesquisa pesquisa “Mulheres evangélicas, política e cotidiano” do Instituto de Estudos da Religião (ISER) analisou que as mulheres evangélicas, de maioria pobre e negra, validam o papel de Michelle como mulher “exemplar” e modelo a ser seguido. Isto ocorre, segundo o estudo, porque as imagens de mãe, esposa, crente, mulher de origem periférica, fora da família tradicional, que enfrentou a gestação e criação da primeira filha sozinha, causam identificação com as mulheres evangélicas ouvidas. O estudo ainda aborda que o papel social de Michelle “evangélica, voluntária e afetuosa” foi importante para ofuscar os escândalos de corrupção da família Bolsonaro. 

Outro dado relevante do estudo e que destoa da afirmação sobre a existência de “cristofobia” no Brasil, isto é, perseguição religiosa contra cristãos por defenderem certos valores, as entrevistadas evangélicas ouvidas afirmam “que as religiões de matriz africana são as que mais sofrem destes males e que não acham correto esse tipo de postura” (cf. pesquisa ISER).

A socióloga Rosângela Silva, conhecida como Janja, esposa do presidente Lula (PT), também teve importante protagonismo na campanha eleitoral vitoriosa em 2022. Foi articuladora das principais agendas políticas do presidente, uma delas, ao levar o candidato Lula ao Complexo do Alemão (CPX). Agenda que foi considerada um “divisor de águas” na campanha, uma vez que o candidato à reeleição Bolsonaro acusou Lula, durante o debate na TV Globo, de se “reunir com traficantes” no Rio de Janeiro. O caso gerou controvérsias com eleitorado carioca do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

Em estudo coordenado pelo MonitorA da Internet Lab, analisou que só nas duas primeiras semanas da eleição de 2022, Janja da Silva recebeu ao menos 799 ataques e Michelle Bolsonaro 273. Os números demonstram que independente da filiação política e postura adotada pelas primeiras-damas, a violência política de gênero atravessa a vida cotidiana das mulheres públicas. No entanto, ao debruçar sobre os dados entendemos que os ataques às primeiras-damas são de teor e violências distintas. Os ataques a Michelle Bolsonaro foram ofensas morais relacionadas à corrupção, enquanto Janja foi alvo de intolerância religiosa, devido a uma foto postada em fevereiro de 2021 onde ela aparece de branco ao lado de um altar com imagens de orixás. 

Os ataques de intolerância religiosa contra a primeira dama Janja se apoiam no imaginário social que busca reforçar as religiões de matriz africana enquanto “demoníacas” e “diabólicas”. Em um país de maioria cristã e feminina, cujo processo de transição religiosa está a todo vapor passando de católicos para evangélicos e aumento dos sem-religião, resta saber se esses distintos grupos religiosos se apoiarão em discursos de “cristianização” do Estado brasileiro ou de combate ao racismo religioso. As mulheres evangélicas apontam o caminho: intolerância religiosa é uma postura incorreta e está em contradição com os valores humanistas cristãos. 

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