“O pastor e o ateu”, por Delcides Marques

Foi lançada ontem, dia 04/12, uma versão do clássico evangélico de Kleber Lucas, “Deus cuida de mim”. A novidade é a parceria musical com o extraordinário Caetano Veloso (link para o vídeo). A sinergia entre o consagrado ateu e o pastor rendeu o que falar. Kleber Lucas vem sendo “cancelado” entre os “irmãos” há cerca de cinco anos. Esse ícone da música gospel nacional está condenado nos tribunais da moralidade evangélica por suas posições contrárias a certos padrões: esperados: cantar música profana, convidar um padre para pregar, participar de um culto ecumênico num terreiro de candomblé, aderir às pautas da esquerda e gravar o louvor com um descrente.

Esse compositor, instrumentista, cantor e produtor musical mantém uma surpreendente popularidade desde fins da década de 1990. Ele é autor de vários hits no meio evangélico há dois decênios, entre eles: “Deus cuida de mim”, “Aos pés da cruz”, “Deus forte”, “Meu alvo é Cristo” e “Eu vou seguir com fé” e “Vou deixar na cruz”. A indubitável presença de suas músicas no cancioneiro cristão fez dele um dos mais importantes nomes da música gospel contemporânea. Trata-se, em suma, de uma influência musical amplamente celebrada. 

Mas Kleber Lucas vêm desagradando o público evangélico nos últimos tempos, como se as suas decisões fossem pecados imperdoáveis pela comunidade cristã. Se fossem ao menos pecados contra Deus! Mas pecar contra os costumes evangélicos, sem chance, sem perdão. Não há penitência que salve. Afinal de contas, Deus perdoa, já os crentes (só o fazem quando conveniente)… É provável que logo menos suas canções sejam proibidas ou será necessário desvincular as canções de seu compositor.

O primeiro deslize de Kleber Lucas foi cantar “música mundana” no púlpito da igreja que fundou e pastoreia, a Igreja Batista Soul, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Ele entoou a música “Epitáfio”, dos Titãs, durante uma pregação sobre o tempo e, imediatamente à publicação do vídeo, os comentários contestadores o acusavam de cantar “música do mundo”, “música secular”, “música profana”. Ele foi criticado nos comentários ao vídeo por estar “perdido”, “desviado do foco” e caminhando para a “inversão dos valores”. Outro registro desse “pecado” de Kleber Lucas seguiu a mesma esteira, mas agora entoando “Lanterna dos Afogados”, canção de Os Paralamas do Sucesso, no evento Encontro com Caio Fábio.

Outro “pecado” de Kleber Lucas contra os crentes, até mais grave que o anterior, foi convidar o padre Fábio de Melo para participar da festa de aniversário da igreja que pastoreia. Em comemoração aos três anos do templo, o padre fechou o encontro cantando e pregando. Mais uma vez, não faltaram acusações, mas agora ainda mais violentas nos comentários ao vídeo: “apóstata”, “herege”, “fogo estranho”, “virou bagunça”, “desviado”, “perdeu o sentido”. A repercussão polêmica e difamatória se expandiu muito rapidamente nos fecundos fulcros das fofocas evangélicas.

Depois, um acontecimento arriscou minar ainda mais drasticamente a sua reputação entre os evangélicos. O evento foi a entrega de uma doação ao terreiro que havia sido criminosamente incendiado em 2014 por ato de intolerância religiosa. O dinheiro arrecadado foi entregue num culto ecumênico com a presença de pastores, incluindo Kleber Lucas. Imediatamente à divulgação, páginas virtuais, grupos sociais e canais de vídeos proliferaram a notícia de que ele havia visitado, tocado e cantado “músicas seculares”, mas agora num terreiro de candomblé. Parte da reunião inter-religiosa, e particularmente o momento em que Kleber Lucas participa das canções, foi publicizada num vídeo no Youtube em que ele aparece cantando mais uma “música mundana”: “Maria, Maria”, de Milton Nascimento (que ironicamente compõe o álbum Música do mundo), acompanhado de atabaques. Nada mais foi preciso para um novo e desmedido alvoroço entre os crentes. A participação de Kleber Lucas nesse terreiro fez do ídolo um demônio. Era o que faltava para se decretar a sua apostasia: da glória à rejeição, de homem abençoado a desviado. Sabe-se que após a entrada triunfal vem o julgamento, condenação e crucificação. E assim foi com Kleber Lucas: num dia é exemplo de adorador e no outro é amaldiçoado como idólatra e endemoniado. 

Agravando ainda mais a situação, em tempos de adesão bastante generalizada de evangélicos ao bolsonarismo, ele foi uma voz destoante, por defender publicamente seu voto em Lula. E agora grava um hino de louvor a Deus com um ateu. Como demonstrado, espero que os fãs de Caetano entendam que esse pastor é diferenciado. O próprio Caetano não seria ingênuo de se aproximar sem critério de um pastor evangélico.

Enfim, e para finalizar, as questões que ficam são: Qual o sentido e a pertinência de tratar o outro como inimigo e demoníaco e não como irmão ou parceiro? Por que o honroso é rejeitado e o vergonhoso é enaltecido? O que torna concebível celebrar um fascista, racista, homofóbico, narcisista e torturador como homem de Deus e não alguém que promove respeito, tolerância e amor? Entendeu que Cristo não andava com os religiosos, mas costumeiramente os escandalizava? Irônico, não?  Por que é tão difícil entender que Jesus só desprezava um grupo de pessoas, justamente os religiosos hipócritas presos à legalidade rigidamente desumana, atados ao cinismo espiritual disfarçado em santidade e vinculados à vanglória de serem julgadores de tudo e de todos? 

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