Nesses últimos dias que antecedem o Natal, não raro se é tomado por uma certa nostalgia. Memórias afetivas, familiares, mãos que se tocam, abraços que se dão, cenas da vida que aquecem o coração, véspera de Natal. A experiência natalina mora no limite do vivido, do agora e do ainda não.
Vivido, a memória do Cristo menino na frágil manjedoura protegido e cuidado por seus humildes e pobres pais em um lugar incerto na Palestina do primeiro século. Memória da natividade nascida e preservada com zelo pelas pobres comunidades primitivas que conspiravam a mesma fé no menino Deus que inverteu com o seu advento o solo seguro das fés hegemônicas, ufanistas, dos panteões dos deuses que dominavam o mundo ex nihil, assentados em tronos cósmicos que comandavam as hostes celestiais e o destino da humanidade como quem manipula peças inanimadas em um tabuleiro ao sabor dos seus quereres, indiferentes às sortes dos homens, meros mortais, que condenados são obrigados a rastejar por toda a vida o peso de sua mísera mortalidade, signo indelével de sua essencial indignidade.
Jesus, a alegria dos homens (da humanidade) prefere a manjedoura ao trono, opta pelo estábulo aos palácios, escolhe ser encarnado num frágil bebê de colo, sendo acarinhado, embalado e ninado, a ser adulto autossuficiente. O presépio, arte que tem o seu solo de nascimento na Idade Média, foi o recurso pedagógico de transmissão da mensagem natalina e assim como as perícopes do Novo Testamento, fazem sonhar o leitor com essa noite perfeita de amor, paz e proteção, onde no centro da cena está o Emanuel, Deus conosco, menino Deus, raíz de Davi. Jesus na manjedoura é a encarnação da paz e da proteção divina patermaternal. O divino e o humano protegem Jesus em sua manjedoura humilde, humanamente divina. Noite de paz, noite de amor, noite feliz!
Na imobilidade da cena de Jesus está a opção de Deus pelos pobres, pelos fracos, pelos refugiados, pelos sem tetos, pelas vítimas do mercado, o deus deste século. Nada de trono imponente de ouro e pedras preciosas, lugares inacessíveis aos homens, o Olimpo, a assembleia dos deuses. O menino Deus está na manjedoura, signo da humildade e concomitantemente, da marginalidade, da clandestinidade e da invisibilidade. Os Evangelhos narram e eternizam a natividade em palavras para a pouca gente letrada dos primeiros séculos do cristianismo. Os presépios contam e perenizam o nascimento do Divino-Menino para a gente iletrada de todos os tempos, gente que busca nessa vida uma manjedoura para compartilhar com aqueles que não têm onde reclinar a cabeça. Narrativas e memória constituem o vivido e o elã vital do Natal.
A dimensão do agora aponta a crueza e realidade dessa vida na periferia do mundo (Jesus também foi periférico), onde milhões de pessoas padecem de fome, violência, medo, desemprego, tragédias anunciadas e produzidas por necropoderes, gestores e amantes da morte com as suas infinitas faces sombrias. Assim como Jesus nasceu sob o signo do desterro, menino de dores, rebento de uma família de pais refugiados, agora e ainda permanecem as perseguições políticas, religiosas, os discursos de ódio, o preconceito, a intolerância, os dilemas climáticos e outros desafios estruturais que condenam milhares de pessoas à condição de refugiados e que procuram em terras estrangeiras a sobrevivência em meio ao desespero, à dor e à saudade da terra natal – novo mundo, velhos problemas.
O ainda não é a expectativa, a esperança, a utopia do Reino anelado no íntimo mais profundo dos corações que sofrem e sonham com todas as frágeis forças do seu ser, a instauração do Reino de Deus. Reino do menino Deus que é o sonho dos pobres, dos miseráveis, dos excluídos. O natal é em si o protesto em prol da vida, o grito dos indignados e dos esquecidos e é por isso que os poderosos “deste século” odeiam o natal, odeiam a ideia e a imagem de um Deus que se fez pobre e habitou entre os miseráveis do mundo, essa imagem não é rentável e portanto não serve aos novos propósitos natalinos. O natal do mercado é a encarnação da aporofobia. Não há lugares para os pobres nos natais contemporâneos, não há manjedouras, apenas berços esplêndidos.
No início, tentaram impedir o Cristo de vingar (vide Mateus 2.13-23) e hoje capitalizaram e transformaram o Natal em consumismo esvaziado de áurea, transformando a celebração em louvores ao mercado com os seus ritos de compra e venda, fetiche da mercadoria. Esse é provavelmente um dos golpes mais duros que a celebração recebeu nesses mais de dois mil anos: apagar da memória a celebração da natividade do deus-Menino, e no lugar da manjedoura se erigir um novo templo que ocupa o centro da vida contemporânea, os shoppings centers com as suas vitrines repletas das mais inessenciais novidades e mais recentemente, as lojas virtuais e com elas se instaura a completa ressignificação e reificação natalina. Novos símbolos, nova linguagem, novo significado.
Como diria o mestre já encantado Rubem Alves, “falar sobre Deus, não é falar sobre Deus. É falar sobre o seu desejo, para nós. É isto apenas que conhecemos: Deus para nós, pro nobis, face humana.” Assim, falar da natividade do menino Deus é falar do seu desejo, para nós. Mãos que se tocam, abraços que se dão, cenas da vida que aquecem o coração, véspera de Natal. Que o menino Deus construa uma manjedoura no centro dos corações para que o seu Reino venha sem demora!