“Sobre gratuidade, confiança e solidariedade”, por Cláudio de Oliveira Ribeiro


(“A lista de Schindler”)

Eu sou maior do que era antes
Estou melhor do que era ontem
Eu sou filho do mistério e do silêncio
Somente o tempo vai me revelar quem sou
(“Maior”, de Dani Black)

Um momento de grande emoção para mim foi assistir A lista de Schindler, ganhador do Oscar de melhor filme de 1994. Tempos atrás, eu pude vê-lo novamente pela TV e revivi cada cena, cada suspense, cada lágrima. O filme, dirigido e produzido por Steven Spielberg, apresenta a história real e comovente de Oskar Schindler, um empresário alemão, brilhantemente interpretado por Liam Neeson. Não obstante suas contradições, ganância e oportunismos, e sendo compelido a superá-las, ele fez o movimento de estar ao lado de vítimas do nazismo, a ponto de perder sua fortuna no intuito de agir para salvar mais de mil judeus dos campos de concentração. É uma história sobre genocídio e desespero, mas também de amor, solidariedade e esperança.

O filme mostra, com tintas extremamente realistas, a perseguição aos judeus na Polônia e a recolocação deles no Gueto de Cracóvia, em 1941. As cenas revelam famílias inteiras amontoadas em pequenos quartos até a transferência para o campo de concentração comandado pelo cruel e corrupto Amon Goeth (Ralph Fiennes).

Patrocinado pelos militares, Schindler adquire uma fábrica para produzir panelas para o exército. Ao precisar de ajuda na administração, ele recorre à colaboração de Itzhak Stern, interpretado por Ben Kingsley, um oficial do Conselho Judeu de Cracóvia, que possuía contatos com a comunidade empresária de judeus. Stern, com sabedoria, astúcia e sensibilidade humana, promove uma série de esforços e estratégias que salva um contingente expressivo de judeus de ser transportado para campos de concentração ou morto.

Repleto de simbologias, o filme mostra, por exemplo, uma sequência chocante e interpeladora com o recurso de duas cenas-chave extasiantes: a menina judia correndo perdida no meio do terror dos nazistas, cujo vestido ganha a cor vermelha em meio ao preto e branco do filme, e depois, já morta, sendo levada para a pilha de cadáveres queimados. Como tais contrastes de cor e de sentido podem nos despertar para a vida e para a sensibilidade humana?

Lembrei-me das palavras de Rubem Alves. Em Creio da ressurreição do corpo (1984, p. 55), obra que tanto marcou a minha trajetória de vida, ele nos alertara que:

O medo é o canto da morte. E o corpo, belo, se contorce… Livre, se agacha…Franco, se fecha numa máscara… Instaura-se a tentação no mesmo lugar em que mora o medo.

No desenrolar da história, Schindler, ao ver o sofrimento de seus empregados, passa por profundas crises e transformações e se coloca, gradativamente, em uma posição nova e solidária, participando firme e ativamente dos processos que visavam à salvação daquelas vidas.

Ao final da guerra, com a derrocada alemã, Schindler, pelos vínculos que possuía com o Partido Nazista e como alguém que lucrou com a guerra, precisou fugir das Forças Aliadas. Ao se despedir de seus empregados, recebe destes uma carta que testifica não ser ele um criminoso, e, junto dela, um anel com uma citação do Talmude, que havia sido dita à Schindler por Stern: “Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro”. Schindler fica fortemente tocado com a mensagem, mas, ao mesmo tempo, profundamente envergonhado por considerar que poderia ter feito mais para salvar mais vidas. É impactante a fala do protagonista, em meio ao choro, dizendo que deveria ter vendido os seus pertences, como o carro ou o broche, para salvar outras pessoas.

Depois de algumas cenas mostrando eventos do pós-guerra, o “preto e branco” do filme dá lugar ao colorido do final com as homenagens dos sobreviventes no túmulo de Oskar Schindler. A emocionante caminhada dos judeus que trabalharam na fábrica do empresário, cada qual colocando uma pedra em sua lápide, como no costume judaico de expressar gratidão a pessoas falecidas, tocou profundamente nosso coração. Até mesmo os atores e atrizes que interpretaram as personagens principais caminharam de mãos dadas com elas, colocando suas pedras e rosas na lápide enquanto passavam. Reconhecimento e graça!

O filme me marcara profundamente no início dos anos de 1990, e não somente a mim, mas a um número enorme de pessoas que, vidradas, se mobilizaram num longa preto e branco com mais de três horas de duração. À época, comecei a crer que algo misterioso estava no ar, sensibilizando pessoas, movendo-as… No mesmo período, Herbert de Souza, o inesquecível Betinho, líder de significativos movimentos sociais, também chamava a atenção de tantos para a campanha “Ação da cidadania contra a fome e a miséria, pela vida”. Um despertar de utopias se dava.

O filme, em todos os instantes, me fazia lembrar dos dramas vividos pelo pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer, martirizado pelas forças sombrias do nazismo, cujo testemunho tanto marcou meu pensamento teológico e pastoral. Em cada cena, a memória de Bonhoeffer ia e vinha em minha mente. Em Resistência e submissão (1980, p. 196), ele nos diz:

Ainda o passado nos tortura,De dias maus nos pesa a amargura;
Senhor, concede às almas espantadas
A salvação, para qual são preparadas.

As mudanças na vida de Schindler, engendradas pela confrontação com a dor e o sofrimento de tantas vidas, me levam a recordar a linda canção já citada, de Dani Black, “Maior”, que eu ouvi com a participação de Milton Nascimento, e me fez pensar. Ela ficou em minha mente por muitas noites, e, vez ou outra, volta para me alumiar. Ela diz que:

As cores mudamAs mudas crescem
Quando se desnudam
Quando não se esquecem
Daquelas dores que deixamos para trás
Sem saber que aquele choro valia ouro
Estamos existindo entre mistérios e silêncios
Evoluindo a cada lua a cada sol
Se era certo ou se errei
Se sou súdito se sou rei
Somente atento à voz do tempo saberei.

Ah, se todos nós reconhecêssemos que poderíamos e podemos fazer muito mais! O carro vendido para salvar mais dez vidas ou o broche para salvar uma ou duas que seja. E ele, Schindler, que salvou mais de mil, se sentiu como “servo inútil e sofredor”, como na profecia bíblica.

E o Reino de Deus vai sendo fermentado por aí, graciosamente… Com certo custo, é verdade! De tantos trabalhadores e trabalhadoras, de gente que busca a justiça e a paz, que cultiva a dignidade da vida, dos “Júlios Lancelottis” e anônimos, dos grupos que abraçam as ações sociais das igrejas e tantos outros generosos e solidários movimentos, dos que protestam contra a violência e contras as armas. Tudo sob a maravilha da “graça custosa”, como se referia Bonhoeffer, assassinado pelos milicianos de sua época.

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