Duas ou três palavras a respeito de neutralidade política

Por Adalton Marques, Gabriel Pugliese e Delcides Marques*

 

A noção de neutralidade no Programa Escola sem Partido pretende superar “doutrinações” e “ideologias”. No entanto, o modo como a noção é utilizada carece de debate. Neutralidade assume, em política, um significado completamente diferente daquele utilizado em ciência.

O KRISIS vem a público manifestar-se criticamente diante das propostas legislativas que visam constituir o Programa Escola sem Partido. Esse Programa pretende controlar a forma e a função do ensino, tornando obrigatório um conjunto de procedimentos para os professores, resguardando a educação do “abuso da liberdade de ensinar”. Evitando com isso qualquer tipo de “doutrinação” nas escolas, o que incluiria de forma bastante combativa a “teoria ou ideologia de gênero” e qualquer “cooptação político-partidária ou ideológica”. É um Programa, portanto, que se arvora na responsabilidade de substanciar a educação nacional atendendo aos seguintes princípios: neutralidade (política, ideológica e religiosa do Estado), pluralismo (de ideias no ambiente escolar), liberdade (de aprender e de ensinar, de consciência e de crença), vulnerabilidade (do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado) e direito (compreendido como liberdade de consciência e de crença do aluno, em acordo com as convicções dos pais). Configura-se assim como um esforço para evidenciar os alegados perigos do que chama de “prática da doutrinação política e ideológica nas escolas”. Mas esse esforço de mostrar com clareza, lucidez e iluminação apresentam seus próprios problemas.

Afinal de contas, cada época possui a sua confortável e danosa iluminação – poder-se-ia dizer em companhia do filósofo italiano, Giorgio Agamben. As luzes do tempo são como métricas ou normalizações, irradiando um senso majoritário que deve servir ao pensamento e à moral, ou, de todo modo, ao debate das questões públicas. Como tal, elas fazem da escuridão uma condição privativa de visão, como se só pudéssemos enxergar sob as condições positivas e adequadas propiciadas pela incidência de luz. Luz versus escuridão, uma diferença absoluta… e quase já podemos ver outros pares conformadores do nosso pensamento e moral: bem/mal, belo/feio, normal/patológico, razão/loucura, real/imaginário, ciência/ideologia. Contra essas oposições espúrias, cada época também possuiu suas resistências, suas/seus renitentes perambuladoras/es de trevas em trevas, suficientemente habilidosas/os e corajosas/os para desinibir as células periféricas de suas retinas (off-cells), com as quais puderam exercer aquela experiência singular de visão que se processa toda vez que apagamos as luzes e damos o tempo necessário para que os nossos olhos se acostumem à nova condição. O escuro, se nos guiarmos pelos passos dessas/es intercessoras/es, já não poderá ser tomado como uma privação, como mera carência/falta de luz. Mas como outra condição de visão. Aqueles que assim enxergam, tornam-se portadores de outros pontos de vista! Capazes, portanto, de denunciar aquilo que, em suas épocas, era considerado o modo adequado de pensar, de agir, de desejar. Pois cada época erige seus próprios malvados, horríveis, doentes, loucos, selvagens, pseudocientistas. Apenas para lembrar dois formidáveis abusos de época, acompanhando a crítica de Claude Lévi-Strauss, em Totemismo hoje, a pintura de El Greco já foi considerada resultado de uma doença em seu globo ocular, assim como a noção psiquiátrica de histeria serviu para patologizar “os fenômenos humanos que os sábios preferiam considerar exteriores a seu universo moral, a fim de proteger a boa consciência que sentiam em face deste”.

As luzes da nossa época também nos convidam a agir com razoabilidade, empurrando para fora do círculo da nossa boa consciência aquilo que reclama pela singularidade. A bola da vez: as exigências das políticas da diferença. O mecanismo: dizer que são políticas! Curioso reaparecimento do positivismo (Ele havia desaparecido? Não!). Curiosa adesão à neutralidade, suspeitamente ligada aos modos majoritários (o que não significa maiorias quantitativas) de nossa existência. Assim, um ensino branco, cristão, macho, heteronormativo, liberal, adulto, adequa-se ao imperativo da neutralidade, afinal, conforma-se à norma predominante e não exige das/os alunas/os a convivência com a diferença, com as/os diferentes, com as/os outras/os. Eis a iluminação do movimento Escola sem Partido, sua POLÍTICA constituída em camadas geológico-morais bastante profundas. Tudo seria mais fácil se se tratasse apenas de uma disputa legislativa em torno do Projeto de Lei do Senado nº 193 (2016)1, do Projeto de Lei nº 1.411 (2015)2 e do Projeto de Lei nº 867/20153.

Neutralidade é uma noção positivista para denotar em filosofia da ciência a relação de imparcialidade (sempre difícil e discutível) entre o pesquisador e seu objeto. Trata-se de uma prerrogativa por parte do pesquisador de conduzir seus experimentos empíricos sem prenoções axiológicas frente aos fenômenos, com o objetivo de expulsar a política e a moral dos domínios científicos. Neutralidade responde em ciências à sua própria singularidade, de uma busca do ponto arquimediano onde a verdade pode ser alcançada por um sujeito universal (branco, cristão, macho, heteronormativo, liberal, adulto) produzido artificialmente através de experiências. O problema é que essas noções de neutralidade em ciências começaram a ser mobilizadas para registros onde não podem funcionar do mesmo modo. O caso mais claro: na política. E somente por isso, estas são duas vocações diferentes (disso não se pode esquecer). Em política, neutralidade assume um significado completamente diferente do que no âmbito da ciência. Ao contrário de implicar uma não-posição artificial, em política, neutralidade significa uma tomada de posição inativa frente aos acontecimentos. Trata-se de uma posição conservadora e não implicada, refratária à transformação. Neutralidade aqui é uma força para a manutenção do status quo, e, portanto, significa imediatamente assumir uma posição política que resguarda os modos majoritários de existência.

Eis um desejo estratégico de algumas formas de liberalismo avançado, uma leitura tecnocrata de posicionamentos políticos, e que pretendem fazer convergir política e justiça num mesmo véu positivista, no qual a moral e os bons costumes coincidem com o que se quer conservar. Em política não existe ponto arquimediano! Exatamente porque não existe um ponto fora da terra e dos assuntos políticos. Sob esse registro, a voga da neutralidade política de nosso tempo significa, mais uma vez, a manutenção virulenta e autoritária de interesses escusos de um grupo de pessoas irritadas com qualquer pluralidade – curiosamente, em nome da pluralidade!. Só que dessa vez, a falácia da neutralidade cria o benefício estratégico de não tornar os sujeitos responsáveis por suas posições conservadoras. Essa tentativa retórica e falaciosa torna-se clara, toda vez que uma posição política é tomada como o negativo e como alvo de acusação. Porque contra a política se pretende colocar uma posição de imparcialidade onde ela não tem sentido. Porque em política os sujeitos devem ser responsáveis por suas posições.

Imparcialidade em política, assim, significa ou tolice ou uma espúria e covarde estratégia de fazer coincidir política e Estado. Afirmar que o Estado é neutro, como rezam literalmente os Projetos de Lei mencionados, e que por isso os professores devem ser neutros, é uma ladainha impositiva de uma posição política desejada: segundo a qual os professores devem conservar o status quo! Ora, isso nos parece uma forma de doutrinação estabelecida por meio de projetos de leis que reforçam “princípios” constitucionais compreendidos de forma totalmente arbitrária, e que por isso mesmo precisam ser “reforçados”. Aliás, não existe no texto da constituição nenhum princípio de neutralidade como os projetos de lei fazem parecer, mas somente em algumas teorias políticas interessadas!

Assim, de nossa parte, cabe afirmar que essas formas de ação conservadora são posicionamentos políticos que estão completamente em desacordo com a educação política, crítica e plural que defendemos, na qual se ensina e se apreende a debater e conviver com as diferenças, mesmo quando não se tem apreço por elas. Exatamente o que os referidos projetos de lei vilipendiam ao tentar instituir por meio do Direito aquilo que já há algum tempo é a “forma correta de pensar, agir e viver”, e que do ponto de vista dos proponentes, felizmente coincide com as suas convicções políticas, morais e religiosas.

* Professores de Antropologia da Univasf e membros do KRISIS – Laboratório de Antropologia Crítica.

1 De autoria do pastor evangélico e senador, Magno Malta (PR-ES), inclui entre as diretrizes e bases da educação o “Programa Escola sem Partido”. Encontra-se nas mãos do relator, Cristovam Buarque (PPS-DF).

2 De autoria do economista e deputado, Rogério Marinho (PSDB/RN), tipifica o crime de Assédio Ideológico e dá outras providências. Recebeu parecer do relator, deputado Izalci (PSDB-DF), pela aprovação, com substitutivo. Encontra-se pronto para pauta na Comissão de Educação.

3 De autoria do contador e deputado, Izalci Lucas (PSDB/DF), também inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Foi apensado ao Projeto de Lei n° 7.180 (2014). Este, por sua vez, de autoria do pastor evangélico e deputado, Erivelton Santana (PSC/BA), “inclui entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. Aguarda a instalação de Comissão Temporária, bem como do parecer do Relator na Comissão Especial destinada a tal finalidade.

Obs. Texto inicialmente publicado no blog do SindUnivasf em 28/out./2016.

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