Por Delcides Marques*
O autoritarismo político do presidente da República se manifesta de diversas formas e nos mais variados momentos. Numa dessas ocasiões, ele procura afastar de seu governo qualquer mácula que evidencie lastros de corrupção. Não há corrupção onde não há investigação. Trata-se do caso relacionado ao Ministério da Educação e as propinas cobradas por pastores a prefeitos, com aval e incentivo do ministro e do presidente.
A gestão do Ministério da Educação (MEC) é acusada de envolvimento com corrupção. Sabe-se, há alguns dias, que o então Ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, um homem terrivelmente evangélico, assumiu em áudio vazado a sua participação num conluio com outros pastores, o que envolvia o pedido de propina a diversos prefeitos. Ou seja, os pastores requeriam dinheiro em troca de ações destinadas às prefeituras, ações que deveriam ser realizadas sob a responsabilidade do governo federal à população, sem qualquer relação com partidarismo político ou aliança religiosa.
As denúncias implicadas no pedágio cobrado por esses pastores aos prefeitos que queriam que suas demandas fossem atendidas já são de amplo conhecimento. Estão facilmente disponíveis nos diversos meios de comunicação e não é possível que alguém diga que desconhece a notícia, a menos que não se queira vê-la. De todo modo, o teor fundamental do incidente exprime que aquilo que deveria ser feito gratuitamente é concretizado apenas na forma de uma troca de favores: “Quer uma escola? Deposite primeiro um dinheiro na minha conta” ou “Mande um saquinho de ouro para mim que a verba pública chegará”.
Curiosamente, a chantagem feita pelos pastores aos prefeitos passava fundamentalmente pelo aval do ministro da educação. Nessa história toda, dois deles tiveram seus nomes revelados: o pastor Gilmar Santos e seu assessor, o pastor Amilton Moura. São lobistas e lobos, cada vez mais enriquecidos com a cobrança de propina autorizada pelo ministério da desmoralização evangélica. Essa denúncia de corrupção evidencia a existência de um gabinete paralelo delineado por pastores que controlariam a agenda e a verba da educação. Poder-se-ia dizer que o presidente da República nada teria a ver com isso. Mas a questão se torna assustadora quando parte do áudio do pastor Milton Ribeiro assume que essas coisas aconteciam com a chancela e em atenção ao pedido especial do próprio presidente da República, Jair Messias Bolsonaro.
E o que o presidente fez nessa situação? Ele incentivou a atuação da Polícia Federal frente ao caso? Ele permitiu que a Procuradoria-Geral da República exercesse seu papel fiscalizador? Ele garantiu que o Ministério Público Federal apurasse as informações? Nada disso! Diante do pedido de que o presidente divulgasse sua agenda e os temas dos encontros com os pastores citados no esquema, sabe o que ele fez? O Gabinete de Segurança Institucional, na pessoa do General Augusto Heleno, bloqueou, a pedido do presidente, o acesso a tais informações por cem anos. Que fique claro, cem anos de sigilo de informações públicas que se tornam imediatamente secretas por determinação presidencial. Uma vez que ele alegou que não tinha nada a ver com isso, qual a necessidade do sigilo? O acesso a esse material seria uma forma de desmentir o pastor ministro que o havia acusado de ser o mandatário da troca de favores. Seria um modo de mostrar que ele desconhecia o privilégio dado a esses pastores, ainda que seus amigos pessoais. Mas não foi o que ele fez, ele decretou sigilo.
Mas não é o sigilo uma confissão de crime? O que ele teme com tal divulgação e investigação? O que ele está querendo esconder? Qual o risco que as informações dos pastores poderiam trazer ao presidente? Como não se trata de terroristas, mas de pregadores evangélicos, o que temer? O que esses pastores foram falar com Bolsonaro que não podemos saber? Não estaria esse relatório revelando que ele se encontrava com esses pastores em muitas ocasiões (sabe-se que os pastores foram mais de trinta vezes ao Palácio do Planalto), mais vezes até mesmo que o próprio ministro que está levando a culpa e foi retirado do Ministério? Não revelaria, consequentemente, que a culpa é realmente do presidente e não do bode expiatório? Não elucidaria que o ministro não estava envolvido sozinho nessa patifaria religiosa e política? São tantas perguntas, mas as respostas são negadas por meio de um autoritarismo covarde expresso por um decreto de sigilo. Esse é mesmo um governo medroso que se esconde atrás da Bíblia e da moralidade, mas não preza nem por uma nem pela outra. Um governo que se elegeu em nome da transparência, revelando justamente o contrário disso. Não deveria causar extrema indignação em seu eleitorado? Mas não, há quem defenda o governo e mesmo esse decreto, seja por inocência política, seja por receio de decepção, seja por má-fé.
Se o assunto tratado nas conversas fosse teologia, certamente seria explicitado. Se o tema das conversas fossem os escritos sagrados, seria até honroso mostrá-las. Mas nenhum desses tópicos era de fato abordado por eles, pois se fossem esses os assuntos, não haveria qualquer necessidade de decretar sigilo. Muito pelo contrário, seria o caso de se orgulhar, comemorar e ganhar ainda mais apoio dos religiosos.
Nada disso, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) está sendo usado para roubar o povo e promover o endinheiramento de amigos do presidente. O que o presidente ganharia com essa corrupção? Toda essa patifaria culmina no ganho de votos, por meio de mais um conjunto de trocas vantajosas para todos. Imagine a influência desses pastores canalhas beneficiados pela corrupção fazendo pregações diante de seus fiéis em defesa desse governo! Imagine os fieis sendo usados, manipulados e levados a crer e defender tamanha desfaçatez! Imagine esses pastores dispostos a defender mais o presidente e seus valores do que os ensinos bíblicos, ou maquiando um pelo outro!
O que os encontros entre Bolsonaro e os pastores revela mesmo estando sigiloso? Eles evidenciam que os casos de corrupção, quando não são falados, expostos e investigados aparentemente não existem. E como os dados estão sendo censurados, jogados debaixo do tapete, há uma deliberada tentativa de mascarar e se esquivar dos interesses envolvidos nas visitas desses pastores atrelados aos escândalos do MEC. Para os apoiadores do governo, a armação faz seu efeito e soa como se Bolsonaro fosse a vítima e desconhecesse a prática lucrativa. A não investigação sugere exatamente o oposto disso: o presidente insinua ser realmente o responsável por toda a falcatrua, e diante da acusação de desvio de recursos em pleno ano eleitoral, ele impõe sigilo ao convertido fundo nacional distorcido, de modo que as trapaças dos pastores permitam entrever claramente como elas mesmas estão atreladas ao aval e à indicação de Bolsonaro.
É inaceitável que os evangélicos e a população não estejam vendo isso. É inaceitável que achem essa corrupção normal e se tornem cúmplices desse pecado (para quem tem fé) e crime (para quem aspira por justiça). É inaceitável que essa artimanha falaciosa seja tratada como perseguição. É inaceitável que o aparecimento da verdade seja visto como desnecessário ou prejudicial. Se a verdade deveria libertar, por que esperar cem anos? O sigilo é uma exceção legislativa autoritária, mas ainda bem que o indefensável será mantido em sigilo só por um tempo. Não será necessário esperar os cem anos pretendidos. O próximo presidente pode reverter o sigilo e, portanto, cedo ou tarde saberemos. Será revelado como a ausência de argumentos e a evidência do crime foram obliteradas pelo segredo medroso. Isso tudo mostra o escândalo de um governo que não é tão honesto como se projetou. Um governo onde prevalecem os interesses privados com dinheiro público, onde ocorre um uso hediondo dos recursos públicos e onde até mesmo os gastos do presidente não constam no Portal da Transparência, devido a mais esse sigilo. Esse é um governo cujo cinismo é vergonhoso e inconsequente, e um governo que não se deixa investigar pode ser o mais corrupto da história. Esse governo está fundado na mentira, e ela precisa ser escondida. A verdade que liberta precisa ser vista e dita: desvio de dinheiro público é corrupção. Como diz o texto bíblico: “Seus líderes são rebeldes, amigos de ladrões; todos eles amam o suborno e andam atrás de presentes. Eles não defendem os direitos […]” (Isaías 1.23).
* Delcides Marques é professor de Antropologia na Univasf.