“As diferenças são desconcertantes”, por Claudio de Oliveira Ribeiro

(Green Book – O Guia)

Foi para diferenciar
Que Deus criou a diferença
Quer irá nos aproximar
Intuir o que ele pensa
Se cada ser é só um
E cada um com sua crença
Tudo é raro, nada é comum

(“Diversidade”, Lenine)

Para quem tem realçado a importância da alteridade e do valor das interações culturais e das vivências fronteiriças como elementos de amadurecimento e de empoderamento na vida, assistir ao filme “Green Book – O Guia” (2019) foi algo excepcional. Saí do cinema emocionado ao ver as fronteiras e as experiências de vida de pessoas e grupos tão distintos e conflitantes sendo magicamente cruzadas.

Ganhador do Oscar de melhor filme, “Green Book”, baseado em fatos reais ocorridos nos Estados Unidos em 1962, conta a história de um inusitado encontro. Trata-se da relação entre um migrante grosseirão de família pobre italiana, Tony Lip, interpretado magistralmente por Viggo Mortensen, que presta serviço de segurança em eventos, e, Don Shirley, um rico e refinado pianista negro, vivido por Mahershala Ali. O músico deseja contratar Tony Lip como motorista e segurança para uma turnê de oito semanas no sul do País, naquela época marcadamente racista e conflitivo.

Na linha do igualmente premiado “Conduzindo Miss Dayse”, o filme, dirigido por Peter Farrelly, mostra a crueza da vida nos Estados Unidos, com as expressões cotidianas de preconceitos e a exploração de base racista nos âmbitos do trabalho, da cultura, da legislação e dos costumes da época. Profundo e, ao mesmo tempo, divertido, “Green Book” não permite que saiamos dele ilesos. Foi assim comigo…

Para quem não acredita na bondade humana, na gratuidade da vida, na superação de preconceitos e nas formas graciosas e românticas de amar poderá ver nas cenas do filme uma luz. É claro que o ser humano não é tão bom assim… Interesses escusos, mentiras, revanchismos e violência não faltam. Não faltam no filme. Não faltam em nossa vida ordinária. Ou não? Um bom balanço de nossos últimos atos e pensamentos seria revelador. A alteridade, que é a possibilidade humana de nos relacionarmos com as realidades, grupos e pessoas diferentes de nós mesmos, não é algo tão simples assim.

Mas, como sabemos, a alteridade é elemento fundamental da fé cristã. Não é mera opção. Ela passa pela dimensão decisiva e vocacional da fé. Ela é permeada de visões bíblicas, mas também está presente, como valor, no campo da antropologia e da filosofia. Alter, da origem grega, é o diferente. Portanto, a capacidade de alteridade é reconhecer um “outro” que está além da subjetividade própria de cada pessoa, grupo ou instituição. E o filme nos leva para esses caminhos.

Alteridade é uma postura, um método ou mesmo um sistema de ferramentas científicas que permitem redimensionar, em perspectiva, a realidade. Assim, a plausibilidade de um dado sistema religioso ou cultural se evidenciaria no convívio com o “outro” e não na confrontação apologética, tentando desqualificá-lo, diminuí-lo ou segregá-lo em preconceitos.

Desta forma, abre-se a cortina da vida para possibilidades criativas de aproximação e de convívio das quais decorrerá em melhor compreensão do “outro”, que não mais será visto como exótico, como inimigo, como inferior ou como qualquer outra forma de desqualificação.

E no filme não faltaram diferenças… brancos e negros, migrantes de vários cantos, homens machistas, mulheres desejosas do amor, vidas lascadas e opulência, afetos e violências, policiais corruptos e policiais íntegros, reações agressivas e contundentes diante da opressão e desrespeito humano e posturas de ação e afirmação não-violentas. Minha cabeça foi “à mil”. Vi cada pedacinho do Brasil, cada trecho de nossas vidas, cada esquina. Vi governantes com armas na mão. [Quando assiste ao filme] vi o ódio correndo nas veias dos que ocupavam o poder.

Mas, também me lembrei dos esforços de tanta gente querida em superar concepções e identidades (religiosas e culturais) que, a partir de prerrogativas exclusivistas de superioridade, inibem o acesso ao reconhecimento de ‘um outro’ que seja diferente do ‘mesmo’, que seja ele ou ela mesma. Mesmo com toda a sorte de violência e absolutismos, algo vibrante e criativo pulsa dentro de nós. A alteridade é uma dimensão e realidade constitutiva do ser, compreendido sempre como inter-ser. Ou seja, que o eu só é eu por conta de sua inter-ação com o outro. A busca do diálogo, o reconhecimento dos nossos próprios limites e preconceitos e as atitudes de compreensão e cooperação com o outro podem em muito contribuir para a superação da violência, de todos os tipos, e para uma cultura ecumênica da solidariedade, da justiça e da paz.

Mas, como o filme revela, a vida é tecida por muitas ambiguidades e contradições. Há lutas interiores tremendas em cada um de nós! O teólogo Faustino Teixeira nos chamara a atenção que “de um lado, [está] a demarcação de identidade particulares, ou seja, o refúgio em universos simbólicos que favoreçam a impressão de uma unidade coerente e compacta da realidade social. De outro, a abertura à ‘mestiçagem cultural’, a negociação ou o intercâmbio cognitivo com o horizonte da alteridade (2008, p.70).

Saí do cinema re-vigorado, re-batizado, re-esperançado. Mas, as divisões são profundas e os preconceitos são muito enraizados e estruturados socialmente. A teóloga Ivone Gebara nos alerta que a “nossa percepção do mundo e de nós mesmas se condicionou a uma forma de crença na sobrevivência a partir da concorrência contra os outros. O princípio da cooperação, princípio presente nas formas mais primitivas da vida desde as mais originárias expressões, parece ter sido esquecido. E sabemos que devemos a este princípio inerente à vida todas as conquistas em amor, solidariedade e cuidado que desenvolvemos” (2010, p. 95).

E há um aspecto que está assentado na dimensão existencial. Ele pressupõe certa inclinação antropológica de demarcação de espaço, de diferença e de identidade. Isto pode se dar de forma positiva, como valorização da alteridade, assim como pode ser dar de maneira desintegradora, excludente e até mesmo agressiva. O filme mostra muito bem isso. Sempre nos lembramos do relato bíblico do fariseu e do publicano, em Lucas 18, 10-13. O fariseu, que cumpre a lei à risca e compreende que por isso é aceito e legitimado por Deus, se alegra com tal identidade. Para a mesma autora, “como muitos de nós, ele [o fariseu] sai feliz do templo, talvez até impondo a todos os outros a sua convicção de ser justo diante de Deus e diante de sua própria consciência. Fecha-se numa visão, numa ideologia, numa maneira de compreender sua humanidade e sua religião, quase convencido que é possível reduzir toda a diversidade do mundo a si mesmo. E, o mais grave, arma uma guerra contra os outros que são diferentes, não apenas nas crenças, mas na cor da pele, na orientação sexual, na nacionalidade, na idade. Corre até o risco de torná-los seus inimigos, aqueles que devem ser combatidos e exterminados da face da terra. É difícil ser o publicano, aquele que reconhece o limite se sua existência e de seus atos” (2010, p. 254).

Superar preconceitos e visões limitadas que temos daquele que é diferente de nós é um enorme desafio. É um fio cortante no peito. É a nossa possibilidade de viver, de ter um futuro, de se realizar como gente, como humanos, como pessoas felizes. Cruzar as fronteiras das identidades rígidas, fixas e pré-concebidas. Ir além do “Green Book”.

Aí está, um convite! É para uma viagem ao “sul” de nossas vidas.

Textos citados:

Faustino Teixeira. “O Fundamentalismo em tempos de pluralismo religioso”. In: MOREIRA, Alberto da Silva & DIAS DE OLIVEIRA, Irene (orgs.). O Futuro da Religião na Sociedade Global. São Paulo: Paulinas/UCG, 2008.

Ivone Gebara. Vulnerabilidade, justiça e feminismos. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2010.

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