Esse breve texto pretende entender alguns pontos do que está em jogo num excerto do discurso de Michelle Bolsonaro a uma plateia evangélica nas últimas semanas. Em sua participação na Igreja Batista da Lagoinha, em Minas Gerais, e referindo-se ao Palácio do Planalto, ela afirma que “por muitos anos, por muito tempo aquele lugar foi um lugar consagrado a demônios”. Essa fala foi muito compartilhada, chegando a ser um dos assuntos mais comentados na internet. Em parte do meio evangélico conservador, é muito comum encontrar um linguajar que associa acriticamente os demônios às religiões de matriz afro-brasileira.
Parte dessa rejeição foi expressa antes mesmo de seu esposo tomar posse como presidente. A pedido de Michelle, e ainda em 2018, uma peça de arte da pintora Djanira da Motta e Silva sobre os orixás foi retirada de seu lugar inicialmente destinado ao acesso público no Palácio da Alvorada. E ainda que não se tratasse da área privativa do Palácio, a presença da imagem nesse lugar causou incômodo à então futura primeira-dama que não conseguiu enxergar na obra artística a preservação da leitura histórica do país em sua imagética sacra. Alguém poderia objetar se ela seria obrigada a conviver com essa imagem que colide com sua fé durante os quatro anos em que moraria ali. Sendo um prédio público e tendo em vista a promoção da tolerância religiosa, talvez manter a obra teria sido uma alternativa bem mais prudente. Mas, de fato, isso não é tudo.
O que parece ser apenas a expressão de uma opinião num país onde há liberdade de expressão, ocorre na verdade incitação à intolerância religiosa. Trata-se de um posicionamento histórica e culturalmente desinformado, sem falar que opiniões como essas são inaceitáveis e colocam em risco a vida comum. Assim, os efeitos da associação entre o candomblé e a umbanda com os demônios se torna um perigo para essas religiões e seus seguidores, ainda mais provindo de lideranças religiosas e personagens de referência. A demonização dessas religiões aparece entre as corriqueiras causas de perseguição aos seus adeptos e de atentado aos seus locais de culto. O pavor que os evangélicos costumam ter diante dessas religiões está relacionado à imagem do demônio atribuída às suas entidades.
Por outro lado, há uma exigência hipócrita de tratamento polido para si (queremos respeito) sem que isso implique em conceder o mesmo ao outro. Curioso que os evangélicos foram objeto de zombaria durante décadas, quando só havia uma religião oficial no país. Mesmo depois que os protestantes foram tolerados, as religiões dos pretos se mantiveram à margem. Por muito tempo, nessas terras funcionaram critérios esmagadoramente católico-jurídicos para dizer o que era ou não religião. Lamentavelmente os perseguidos de outrora podem ser os perseguidores de hoje e amanhã.
Ademais, o fascismo e a intolerância costumam desumanizar os opositores e trata-los como indesejáveis. E para aniquilar o outro, uma justificativa fundamental é toma-lo como personificação do mal. Está justificada a possibilidade de fazer o que se bem entender com ele: pode odiar, matar e torturar, pois não são exatamente humanos. Com esse adversário tornado objeto e abjeto não há debate, há apenas um inimigo que se quer exterminar nessa luta contra o mal. O diferente e a diferença não podem coexistir e a possibilidade de debate e diálogo é substituída pela imposição de um ponto de vista unilateral. Nesse caso, não é possível discordar e conviver, pois aquele que vive sob outras perspectivas deve, no limite, ser exterminado.
Onde Michelle aparecer haverá proeminência desse discurso religioso com fins políticos. Valendo-se do vocabulário da batalha espiritual, sua fala traz imagens que opõem o bem contra o mal. Em decorrência dessa oposição, desdobram-se outras: evangélicos contra afro-brasileiros e Bolsonaro contra Lula. Ao opor aquele que seria escolhido por Deus contra outro pactuado com Satanás, a luta eleitoral só poderia culminar com a vitória de Bolsonaro (associada ao triunfo de Deus). Essa posição reverbera e alimenta uma concepção maniqueísta, fundamentalista, fanática e fascista.
Justamente porque Michelle tem uma imagem pessoal considerada positiva, a aposta política é que ela apareça cada vez mais até as eleições. Durante os mais de três anos presidenciais de seu esposo, ela teve discreta atuação pública, como se não fosse realmente de seu interesse participar do governo ou ter holofotes. Tudo para o marido, pois seu papel como primeira-dama era servi-lo apenas. Todavia, desde os últimos meses, e particularmente desde as últimas semanas, suas aparições e discursos chegaram para causar impacto na corrida presidencial. O seu lugar agora é cada vez mais no palanque, na pretensão de humanizar um pouco a campanha e atenuar a imagem grotesca e desgastada de Bolsonaro. Com a intenção ainda de trazer uma dimensão espiritualizada para o governo. A estratégia agora é conquistar votos femininos, pois sabe-se que ele costumeiramente trata as mulheres de forma desrespeitosa, valendo-se de expressões misóginas, racistas e sexistas. Está tudo na internet, nem preciso replicar aqui. A estratégia agora é também conquistar e fortalecer a confiança e a fidelização ao presidente por parte de determinados setores evangélicos
A ideia do marketing político é reforçar a religião bolsonarista que o considera mito, ainda que essa religião política esteja sorrateiramente em conflito com os próprios valores do cristianismo. Apenas três breves exemplos das contradições implicadas. Primeiro, quando se defende que “bandido bom é bandido morto” e ao mesmo tempo há admiração ao assassino Guilherme de Pádua, convertido e pastor. Diante da crise entre crime (tem que morrer) e arrependimento (tem que perdoar), fica difícil lidar com o valor cristão. Outro dos contrassensos é que o arauto da família tradicional brasileira, está no terceiro casamento. Diante da crise entre casamento e divórcio, não é simples lidar com o contraste entre um homem que pode se divorciar três vezes (sempre para casar com uma esposa mais nova) e as mulheres que recebem a recomendação de suportar ao limite seus maridos violentos (pois Jesus vai salvá-los um dia). Por fim, há a citação de que “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, ao mesmo tempo em que esse governo está fundado e se mantém sob a égide da mentira, com isso: como chamar de “enviado de Deus” aquele se mais se aproxima do “pai da mentira”?
Espero sinceramente que o povo de fé não se deixe enganar pelas aparências, pois o lobo vem vestido de ovelha, como disse Jesus. O discernimento deve ser objeto de prece. Que sejam percebidas as incongruências dessa falácia política frente aos valores fundamentais da fé cristã. Nem todo aquele que fala em nome do Senhor herdará o reino dos céus, disse em outro momento o Cristo. Aliás, falar no nome d’Ele tão repetidas vezes pode ser o mesmo que tomá-lo em vão, já declarou o Decálogo. Não basta citar textos bíblicos ou falar em nome Deus para se tomar como óbvia e inquestionável a espiritualidade de alguém. Até o demônio sabe os versículos da Bíblia, como fica claro na tentação de Jesus no deserto. E os demônios podem estar, na verdade, onde menos se espera e não onde todo mundo imagina. Satanás é ardiloso, e um de seus nomes é Enganador.