Se você está no Brasil em outubro de 2022 certamente já deve ter ouvido que o cristão não pode votar na esquerda ou em Lula porque estes seriam contrários aos seus valores. Esses grupos se colocam dentro do espectro político da “direita brasileira” e, entre eles, se tornou moeda corrente afirmar que Bolsonaro seria o candidato correto, pois este sim, representaria os valores cristãos.
Mas será isso mesmo? Como definir o que é um valor cristão? Seriam realmente “cristãos” os valores defendidos por estes grupos religiosos? Para responder a esse questionamento, primeiramente temos que saber o que está sendo considerado “valor cristão” e, em segundo lugar, tentar averiguar se esses valores são ou não cristãos. Mas como fazer isso?
Uma das possibilidades seria proceder a uma problematização antropológica e filosófica do que é cristianismo, contudo, não pretendo seguir esse caminho. Neste texto quero entrar em campo como teólogo. Como tal, pretendo tecer minhas considerações a partir do texto bíblico, considerado por estes grupos como a sua norma de fé e prática. Assim sendo, espero confrontar suas afirmações com aquelas da própria Bíblia para saber se sua postura corresponde ao que diz seu texto sagrado. Esta reflexão pode ser resumida na seguinte pergunta: são bíblicos os valores defendidos pela direita brasileira?
O primeiro passo então é saber o que esse grupo defende como valores cristãos. A tarefa não é difícil, pois, ainda que as opiniões sobre o assunto às vezes sejam tratadas de modo distinto, podemos sintetizar esses “valores cristãos” basicamente em quatro posturas, resumidas pelo próprio mote defendido pelo atual presidente em sua campanha e seguido pelos grupos religiosos que estamos tratando aqui. Os valores são: (i) honrar a Deus (Deus acima de todos), (ii) defender a pátria (Brasil acima de tudo), (iii) defender a família, e (iv) buscar a liberdade (cf. discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU).
Por razões de espaço não tenho condições de analisar cada um destes valores aqui, por isso vamos nos focar num deles: “Deus acima de todos”. Num próximo artigo tratarei do que certos grupos entendem acerca da defesa da família. Assim, nesta primeira parte abordarei a seguinte pergunta: é cristão colocar Deus acima de todos?
Como antecipei, a nossa referência será a Bíblia. O que ela afirma sobre isso? Se estamos falando de cristãos, então, nada melhor que começar com o que se Jesus afirma sobre o tema ou o que se pode afirmar acerca de Jesus nesse sentido. Antes de tudo, no texto bíblico Jesus é considerado como o Emanuel, o Deus conosco (Mateus 1.23), o Deus que se fez carne e habitou entre os homens (João 1.14). Para os evangelhos e todo o Novo Testamento, após Jesus não estar mais fisicamente entre seus discípulos, ele passaria a estar entre eles (Mateus 28.20) por meio de seu consolador (João 14.16,17). Ou seja, em nenhum momento o Deus de Jesus, e o próprio Jesus que presentifica a Deus, está acima de todos, mas no meio de todos.
Então, se o texto bíblico desmente o “Deus acima de todos”, de onde viria a afirmação? Seria este mote uma referência ao texto do evangelho que afirma o supremo mandamento de amar a Deus “sobre todas as coisas?” Vamos aos fatos. Por incrível que pareça, quando procuramos tal afirmação na Bíblia, ela não é encontrada. Sempre que alguém fala em “amar a Deus sobre todas as coisas” o texto a que se faz referência se encontra em Mateus 22.37,38. Eis o que ele diz: “Respondeu-lhe (Jesus): Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com toda a mente. Este é o preceito mais importante”.
Mas onde está aí o vocábulo “todas as coisas”? Resposta: em lugar nenhum, ou seja, ele foi colocado onde não estava, pois trata-se de uma interpretação posterior. Não existe nada no texto que indique o amar a Deus sobre todas as coisas; simplesmente ele diz que o maior mandamento requer um amor em que envolva a pessoa em todos os aspectos de sua personalidade. Isso é muito diferente de amar a Deus sobre todas as coisas. Vamos pensar um pouco, quando falamos em um amar sobre todas as coisas podemos pensar que podemos amar a Deus e amar menos aquilo que não é Deus, não é verdade? Mas isso claramente contraria o segundo mandamento que vem logo a seguir. Vejamos: “porém o segundo é equivalente: Amarás o próximo como a ti mesmo. Esses dois preceitos sustentam a lei e os profetas” (Mateus 22.39,40).
O texto é muito esclarecedor: o segundo mandamento é equivalente ao primeiro, sendo assim, a conclusão óbvia é: amar a Deus com todo o coração, alma e mente equivale a amar ao próximo como nós devemos amar a nós mesmos. Desse modo, conclui-se que não se pode amar a Deus sem amar o próximo e amar a si mesmo. Não existe uma superioridade do amor a Deus acima do amor ao próximo, como se pudéssemos amar a Deus sem amar o próximo ou nos amarmos (1 João 4.19-21). Ainda mais uma vez o evangelho: “um novo mandamento vos dou, que vos ameis uns aos outros” (João 13,34).
O que percebemos então é que houve uma modificação conceitual na interpretação do texto bíblico e que começou a dar margem a uma interpretação exclusivista e totalizante dele para fins de dominação. “Amar a Deus sobre todas as coisas” não é bíblico e abre margem para amar menos ou deixar de amar aquilo que não é Deus, inclusive o próximo.
Aliás, esse ponto é muito importante. Quem é o próximo? Geralmente interpretamos o próximo como aquele que possui nossas ideias, que pensa como a gente ou participa de nosso grupo, mas será isso mesmo? Na verdade, o evangelho quer dizer outra coisa: o termo grego para “próximo” é plēsíos e significa “aquele que se aproxima”. Portanto, aquele que se aproxima de mim pode não ser alguém que eu tenha predileção, pode ser um homossexual, um candomblecista, ou qualquer pessoa, inclusive um criminoso e, ainda assim, o mandamento é: se eu o amar eu estou amando a Deus também.
Mas vejamos, amar a Deus acima de todas as coisas não é o mesmo que amar a Deus acima de todos. Portanto, temos neste último termo mais uma fase do processo de transformação ideológica do texto para fins de dominação. Amar a Deus sobre todas as coisas, poderia abrir um precedente para um abandono de “coisas” e se dedicar apenas ao mundo do espírito. Por outro lado, amar a Deus acima de “todos”, significa manter uma postura exclusivista, onde eu sou liberado para amar a Deus acima de todos e, assim, poder odiar aquele que não compartilha do que eu acho que é Deus. Nesse ponto a transformação ideológica do texto está completa: o que antes era um texto que indicava a mais profunda tolerância, é transformado em uma justificativa antibíblica e intolerante com aquele que não concorda com a minha visão religiosa de Deus.
Desse modo, não vemos no projeto de Jesus nenhum tipo de anseio por poder e dominação, por impor seus conceitos sobre as pessoas. Jesus abriu mão da tentação do Diabolos, ou seja, daquele que divide, em ter os reinos deste mundo (Mateus 4.8,9), pois ele não estava interessado nisso. Jesus não veio implantar um projeto de imposição e cristianização do mundo e do Brasil que envolvesse a política institucional, ele veio trazer o reino de Deus. Este reino que não vem de modo visível como um reino humano a partir de um representante desse reino, porque ele está no meio das pessoas (Lucas 17.20-21). Ele não está lá em cima, imposto, mas se manifesta quando as pessoas amam ao próximo como a si mesmos em suas ações concretas pela justiça social. É somente agindo dessa forma que é possível amar a Deus e manifestar o seu “reino”.
Referências
BÍBLIA. Bíblia do peregrino. 3ª. ed. São Paulo: Paulus, 2017.