São aproximadamente 22h40 do dia 02 de outubro de 2022 no Brasil, especificamente na avenida Paulista, importante via de acesso da capital paulista, centro empresarial e financeiro, mas também palco das maiores manifestações do país, sejam elas da esquerda ou da direita política e todos os seus derivados.
O que nos chama a atenção neste dia não é o tempo, frio ou quente, de clima úmido ou seco, mas, o que está se passando naquele local. O que vair ocorrer é o pronunciamento de um dos candidatos mais populares da política brasileira. Luís Inácio Lula da Silva recebe o microfone de Gleisi Hoffman, presidenta do Partido dos Trabalhadores, o maior partido de esquerda do país, e ao receber o microfone se pronuncia como o candidato mais votado no 1º turno das eleições, com 99% das urnas apuradas, alcançando cerca de 57 milhões de votos, enquanto seu oponente, o candidato Jair Messias Bolsonaro, também popular, mas vinculado à extrema-direita, recebe algo entorno de 50 milhões de votos.
A partir desta aparentemente simples descrição etnográfica, o debate político para o segundo turno das eleições (que se estende até o dia 30 do respectivo mês) não será pautado unicamente sobre temas complicados da economia, do funcionamento da máquina pública, do endividamento do Estado, do papel deste em relação aos grandes temas do capitalismo. Um outro tema se fará ainda mais fortemente presente e cercará o entorno dos candidatos: “religião”, “dogmas” e “costumes”, teremos basicamente debates sobre moralidade e liberdades civis.
Começam a circular nas redes sociais antigos vídeos, áudios, fotos e matérias, editadas ou manipuladas a fim de associar um ou outro lado a questões morais controversas ou opiniões que incomodam o status quo que ocupa a direção das maiores instituições evangélicas do país (igrejas, escolas cristãs, instituições e fundações de perfil conservador e fundamentalista).
Não pretendo escrever aqui um tratado, tampouco abordar de forma exaustiva o tema, mas somente realizar uma provocação entorno da problemática dos instrumentos de controle que passaram a ser utilizados pelos presidentes de igrejas na tentativa de orientação do voto conservador.
As estratégias parecem perceptíveis, e as igrejas, após uma vitória acachapante para o parlamento, a partir de um complexo sistema partidário, terminam por eleger cerca de dois terços do parlamento com uma composição majoritariamente de perfil conservador. Por outro lado, uma aparente derrota presidencial os assombra, pois números indicam uma larga vantagem de votos para o candidato de esquerda para cargo máximo executivo do país. O que entra em jogo neste momento é a instrumentalização do voto em direção ao projeto político destes grupos, ou seja, tendo em vista a manutenção das pautas da religião segundo os interesses destes grupos, como pauta no espaço público e tentativa de preservação dos privilégios destes grupos no estado brasileiro.
O Malleus Maleficarum, conhecido como “Martelo das Bruxas”, foi um livro editado na idade média, cujo conteúdo carregava uma metodologia de combate a bruxaria, “muito eficaz” para o tratamento deste tema no medievo, pois basicamente usava de perseguição por meio de tortura para convencer dissidentes, considerados “hereges”. O Malleus era usado para corrigir divergências ideológicas, políticas ou doutrinárias, tratadas tal como desvios, e os divergentes então submetidos à tortura até a confissão e mudança de opinião, ou ainda a morte como forma de punição pública exemplar para que os demais não ousassem seguir outra orientação que não fosse a das instituições e do poder estabelecido.
Para encurtar a conversa, nos nossos dias o formato do Malleus Maleficarum foi retomado em certas instituições evangélicas pelo país, tal como evangélicos históricos como da Igreja Presbiteriana do Brasil e da Igreja Batista, buscaram construir documentos e aprova-los em seus concílios, no intuito de impor orientação política aos fiéis, e consequentemente punindo membros que não se submetessem. Estas igrejas mais históricas possuem sistemas de freios internos que permitem uma oposição a anseios mais autoritários, o mesmo não ocorre em igrejas como Universal do Reino de Deus ou Assembleias de Deus, cujo modelo episcopalista presidencialista onde o poder se concentra no Bispo ou no Pastor presidente, independe da validação de concílios e sínodos, uma vez que de antemão esses parlamentos internos já investiram seus presidentes de tal autoridade sobre a administração moral da instituição.
O caso mais estridente da atualidade ocorreu ontem, quando em visita a sede da Assembleia de Deus do Belenzinho, na cidade de São Paulo, o pastor presidente daquela instituição, ao declarar apoio ao candidato a presidente da república Jair Messias Bolsonaro, o seu líder emendou que a igreja já preparava um documento para punir os membros que não acompanhassem a orientação de não apoiar candidatos de esquerda. O documento foi feito e promulgado (cf. reportagem). Como na disputa atual só temos dois candidatos neste turno das eleições, fica subentendido que o voto do fiel não pode ser desassociado da decisão daquele líder da instituição, sob pena de sofrer sanções a partir de um novo instrumento de “ex-comunhão”, um novo Malleus Maleficarum.
E, neste processo de renovação de bruxos e bruxas, não poderia faltar a figura da mulher, essa personagem “desviante” da sociedade, “responsável” pelo “infeliz” destino de nossa humanidade nas narrativas míticas do judaísmo, de modo que o referido pastor presidente, o Sr. José Welligton Bezerra da Costa, exortou os seus pastores subordinados presentes, os demais membros do sexo masculino, a conversarem com suas esposas, as orientando/convencendo-as a votar no “candidato da igreja”.
Não ficou claro qual a penalidade que seria imposta a mulher evangélica que se comportasse com insubordinação a Deus, a Igreja, seus líderes e esposos votando em outro candidato, neste caso, considerado do demônio, e portanto as aproximando das antigas bruxas medievais. O pacto entre o voto evangélico de cristãos progressistas e a esquerda brasileira fez ressurgir, quem imaginaria, um novo Malleus Maleficarum do século XXI, um novo martelo das bruxas e bruxos, no formato de orientação institucional do voto, acompanhado de punição aos contrários que ousarem votar em outro candidato que não for o ungido pela igreja, mesmo que este seja de um projeto justo, solidário e democrático para o país.
Que haja condições de realização de um saudável debate político público, livres de quaisquer punições da ordem de qualquer cosmologia! Amém!
Referências
PORTELA, Ludmila Noeme Santos. Malleus Maleficarum: bruxaria e misoginia na Baixa Idade Média. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.
CAMPOS, Breno Martins. “Fundamentalismo protestante: a invenção de uma tradição exclusivista na modernidade”. Revista Brasileira de História das Religiões (Anais do 1º Encontro do GT Nacional de História das Religiões e Religiosidades – ANPUH), s/d.