“O que dizem vossas mãos, irmãos? Breve nota sobre a pulsão do sacrifício”, por José Edilson Teles

Tal como mostra hoje, uma vez mais, o uso desenfreado dessa herança bíblica, nós ainda não dispomos de um conceito apropriado para a diferença semântica entre o moralmente incorreto e o profundamente mal. Não existe o demônio, mas o anjo caído segue seu curso calamitoso – seja nos bens invertidos da ação monstruosa, seja também no incontrolável ímpeto de vingança que o segue de perto.
(HABERMAS, Jürgen. Fé e saber, 2013 [2001], p. 18).

A metafísica do pensamento ocidental deve-se, em grande medida, a uma herança da linguagem bíblica sedimentada pela tradição judaico-cristã. O leitor atento a uma das faces de Janus para o passado, sem perder de vista a que se dirige ao presente-futuro, notará que não se trata de uma acusação, mas de uma constatação histórica. De modo geral, é possível dizer que não há quem escape desse processo violento de longa duração agravado pela máquina de guerra mobilizada pelo projeto colonizador, motivo pelo qual se justifica os esforços do pensamento decolonial. Há, pois, uma razão para começarmos pelas ideias basilares do pensamento ocidental a fim de compreendermos nossa angústia existencial: trata-se da constituição não apenas da moldura do pensamento, mas consequentemente de uma disciplina dos corpos, especialmente os tidos como “desviantes”. Como se não bastasse, a arrogância dessa metafísica conseguiu a proeza de universalizar essa forma de pensar e existir no mundo.

Estou ciente de que o parágrafo acima é abrangente, pois condensa um processo de longa duração. Contudo, para fazer-me entendido, delimito-me a um dos aspectos da herança da linguagem bíblica no pensamento ocidental como projeto de poder: a pulsão do sacrifício. Como exercício de desnaturalização da gramática religiosa, comecemos pela metafísica da caridade – sim, nem mesmo esse valor superestimado escapa da pulsão do sacrifício! Seguindo uma interpretação de René Girard (1990 [1972]; 2018), diríamos que o elemento central da teologia da páscoa pressupõe um sacrifício expiatório – chamado “paixão” – para atenuar a culpa cristã, tal como sugere a gramática sacrificial: “cruz”, “morte”, “sangue”, “morreu por nós”, “expiação” etc. Note, por exemplo, as expressões atribuídas ao apóstolo Paulo: “Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios” (Romanos 5:6); “Deus demonstra seu amor pelo fato de Cristo ter morrido por nós” (Romanos 5:8); “Cristo morreu por nossos pecados” (1 Coríntios 15:3); “Ele morreu por todos” (2 Coríntios 5:15); “Cristo se entregou como oferta e sacrifício” (Efésios 5:2). Pobres teólogos, pois sabem que a “violência” atribuída ao “demoníaco” habita no ser da caritas. Portanto, seu fundamento é a culpa e um sacrifício para expiá-lo – e isso “explica” a pulsão pelo chocolate pascoal: é preciso adoçar a morte de um bode expiatório.

Mas, como disse, o exemplo acima é apenas um recurso para desnaturalizarmos uma gramática religiosa superestimada. Vejamos agora alguns exemplos dessa herança bíblica na produção de vítimas preferenciais da pulsão do sacrifício. A divindade – geralmente irada – evocada pelos sacerdotes da moralidade exige sacrifício (leia-se eliminação) dos corpos considerados culpados pela erosão dos valores tradicionais. Consideremos, por exemplo, a noção de “religião”. Em contraposição a ideia de que “religião” significa “religar”, do verbo latim religare, Giorgio Agamben (2007) aponta que seu sentido indica justamente o contrário, “separar”. Agamben nota que o sentido de sagrado implicava numa “separação” do profano, lembrando que essa separação nos ritos antigos era operada por meio dos sacrifícios. Nesse sentido, a própria noção de “sacrifício” aponta para a ideia de corte, fissura, separação da vítima sacrificial, sobre quem recai a ira coletiva.       

Sobre quem recai a ira de uma cegueira coletiva? Quais são os corpos sacrificáveis em “nome de Deus”, dos valores tradicionais de “família” e da “pátria”? Esses lemas não são novos, diga-se. Em O bode expiatório (2018), René Girard propõe uma tipologia dos estereótipos persecutórios que perpassam as modalidades de violência coletiva: a) uma crise social e cultural que provoca a derrocada das instituições democráticas ao produzir a culpabilidade de vítimas expiatórias – em outros tempos, as caças às “bruxas” e, em nossos tempos, o fantasma do “comunismo”, entre outros; b) a produção moral dos crimes indiferenciados – em outros tempos, as acusações de “infanticídio ritual” e “incesto” e, em nossos dias, as acusações de violação das virtudes da família tradicional; c) a produção das marcas de seleção das vítimas – minorias étnicas, misoginia, xenofobia etc. Esses estereótipos nos permitem visualizar o que chamei de “pulsão do sacrifício”, pois os dispositivos bélicos da gramática religiosa supõem um inimigo real ou imaginado a ser combatido, eliminado ou sacrificado.

Os lemas do bolsonarismo são exemplos não apenas de uma pulsão por morte, mas também de uma pulsão por sacrifício – visto que precisam alimentar a máquina de ódio na culpabilidade do outro. Por isso a velha estratégia fascista de coisificar o outro para justificar sua eliminação: vide os exemplos recentes de violência política contra quem pensa diferente. O lema fascista “Deus acima de todos”, a ideia de um inimigo a ser combatido e eliminado (“comunismo”) e o medo da alteridade (fascínio pela sexualidade alheia, por exemplo) apontam para o imaginário de um ato sacrificial. Nessa gramática, a divindade evocada exige uma vítima sacrificial a fim de cumprir o papel de apaziguamento da crise estabelecida. A linguagem operada por religiosos intolerantes supõe operar um religare da “família” e da “nação” brasileira por meio de seus valores cívicos e sagrados, mas na verdade operaram o cuidado em manter a separação (relegere) ao evocar os elementos sacrificiais. Esse “inimigo” é materializado nos corpos coisificados: tem classe, tem cor e tem gênero.

Foi-se o tempo em que pessoas fervorosas juntavam as palmas das mãos num gesto de prece piedosa. Esse gesto tão conhecido na iconografia cristã representava o sentimento de nulidade. Dirigia-se a uma divindade benevolente pronta a retribuir o sacrifício do corpo cansado e mortificado. O gesto traduzia a súplica: “por favor, não mereço, mas preciso”. Agora, somos surpreendidos com mãos que mimetizam armas pedindo a eliminação do outro; mãos que tapam os olhos e disferem discursos racistas, homofóbicos e xenófobos; mãos que não juntam pedaços, mas promovem a separação. Preces orgulhosas, mãos cumplices de assassinatos. Mãos que pulsam o que o coração está cheio: o ódio e o desprezo pelo outro. O que dizem vossas mãos, irmãos? Termino parafraseando a epígrafe de Harbermas acerca da herança bíblica nas sociedades pós-seculares: “o demônio existe e suas mãos são visíveis por meio das mãos dos insensatos”. Finalmente, “se a tua mão te escandaliza, corta-a a atira-a para longe de ti” (Mateus 18.8). Eu e minhas mãos celebraremos a vida, a diversidade e o direito à diferença. Olhem para vossas mãos agora e vejam se há sangue; ouçam os gritos das palmas de suas mãos: o que elas dizem… irmãos?  

Referências bibliográficas

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Edições Paulinas, 1973.

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo. Boitempo, 2007.

GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo. Paz e Terra, 1990 [1972].

GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo. Paulus, 2018.

HABERMAS, Jürgen. Fé e saber. Editora Unesp, 2013 [2001].

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