“A dor e o protesto das lágrimas: Sobre empatia e pandemia”, por Delcides Marques

Quantos de nós perdemos pessoas queridas pelo vírus pandêmico? Quantos de nós lamentamos diariamente a falta que essas pessoas fazem? Quantos de nós sentimos ainda as lágrimas correrem pelo rosto diante da mais singela lembrança de suas companhias? A dor da ausência produz um incessante aperto no peito, acompanhado de uma profunda indignação, pois esperávamos que essas pessoas estivessem continuando suas vidas conosco.

Não tivemos ao menos as condições sanitárias para nos despedirmos de nossos amados que partiram. Foram mortes absolutamente solitárias e nos vimos impotentes diante dessa tragédia biológica. Quase 700 mil brasileiros tiveram suas vidas interrompidas: muitos sonhos ficaram pelo caminho, muitos planos foram descontinuados, muitos sorrisos se desvaneceram. E nós que ficamos, continuamos a vida com um desmedido vazio e inconsolável tristeza em nossos peitos. Foram ceifados amigos, pais, tios, filhos, cunhados, sobrinhos, netos, primos, cônjuges etc. e não pudemos vê-los pela última vez.

O que proponho aqui, nasce desse pranto, filho da saudade, mas nasce também da incomensurável repulsa a toda forma de insensibilidade com a dor que sentíamos e ainda sentimos. Em honra à memória de nossos mortos, não podemos esquecer ou atenuar o que aconteceu. O Brasil ainda chora tantas perdas, e são lágrimas de saudade, mas também de protesto ante o descaso em relação às suas vidas . O vírus não fez o serviço sozinho, teve parcerias necropolíticas importantes, é o que quero destacar.

É óbvio que o presidente não foi responsável pela origem e propagação da Covid-19 no mundo, mas como ele tem a incumbência de cuidar da população brasileira acima de tudo e de todos, era de se esperar que viesse dele o incômodo inicial e mais incisivo com o que estava ocorrendo. E ainda que tenha sido uma tragédia mundial, é notório que a pandemia no Brasil foi mal gerida desde o começo, tanto em sua negação quanto na gestão epidemiológica. Cada ministro da saúde que discordava do presidente em relação ao cuidado com a população era imediatamente trocado (foram quatro ministros em dois anos). Qualquer um que não compartilhasse as diretrizes negacionistas seria irremediavelmente substituído. A opinião do presidente era tratada por ele mesmo como mais relevante que as pesquisas científicas ou as posições de especialistas.

Sabemos muito bem que não foi apenas uma fatalidade tantas vidas perdidas. Parte significativa do que aconteceu não era inevitável e não é mera casualidade o quantitativo de mortes. Já está indiscutivelmente comprovado que houve um deliberado, malvado e perverso descaso sanitário. O desprezo do presidente, ao imitar (com gargalhadas) pessoas sem ar, foi indício de absoluta insanidade e sinalizou o lugar da pandemia nas concepções do presidente. Ele zombou de seu povo (chamou os lamentos pelas mortes de “mimimi” e disse ainda que era apenas “uma gripezinha”), se esquivou de suas responsabilidades (“não sou coveiro”) e indicou medicação para a prevenção e tratamento que ainda não havia sido devidamente testada, induzindo a população ao equívoco de pensar que seu uso tornaria possível passar incólume pelo vírus. A compra da primeira remessa das vacinas foi ignorada durante três meses e depois de noventa mensagens (quantas vidas teriam sido salvas?). Não podemos jamais esquecer ou menosprezar isso.

E soma-se a toda essa negligência o fato de que o presidente nunca demonstrou efetiva empatia pelas perdas e por todo o sofrimento implicado. Bolsonaro chorou poucas vezes em público: uma dessas ocasiões se deu ao rememorar a facada que ele levou em 2018. Em outro momento de choro, ele estava sendo elogiado por sua esposa, durante um ato de campanha. Enfim, ele só chora quando se refere a ele mesmo. É um choro egoísta, um choro de si para si mesmo. Um choro em benefício próprio. Ele não conseguiu chorar pelo povo brasileiro, e nem tentou simular, mesmo que desastrosamente, como fez nos exercícios de flexões, na assinatura com caneta esferográfica comum ou no uso das mãos ao comer farofa em público. Ele não fez a menor questão de mostrar empatia, porque “Narciso acha feio o que não é espelho”. E até mesmo o auxílio que ele ofereceu à população ocorreu sob pressão e contra a sua vontade.

Na contramão disso, a tradição cristã diz que Jesus chorou em três ocasiões. E em todas elas percebe-se a sua humanidade pulsando e identificada com o sofrimento humano. Ele chorou no túmulo de Lázaro, porque o amava (João 11.35). Ele também chorou em protesto pela cidade de Jerusalém que havia atraído destruição sobre si mesma (Lucas 19.41), ou como diriam os Racionais: “Humanidade é má e até Jesus chorou”. E o seu terceiro choro está relacionado à descomunal dor de sua morte (Hebreus 5.7-9).

Num breve destaque ao trecho joanino, a morte de Lázaro tocou a profundamente a sensibilidade de Jesus que chorou a perda de seu amigo. Mas o seu choro também abarcou a inconsolável aflição das irmãs de Lázaro. Jesus não ficou alheio àquele momento, pois ele é o divino que se humaniza e partilha das dores humanas: quando alguém sofre, ele sofre junto. Se o presidente é incapaz de chorar pelo seu povo, Jesus chorou. E ele é o exemplo maior dos cristãos, ou deveria ser. Uma das marcas do autêntico povo de Cristo não é mesmo a compaixão? Onde há o amor e a compaixão, Deus aí está.

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