“As igrejas serão fechadas?: Exorcizando um velho fantasma”, por José Edilson Teles

E mais recentemente eu ouvi dizer esta palavra:
“Deus está morto; de sua compaixão pelo homem Deus morreu”. 
NIETZSCHE, F. “Assim falou Zaratustra”, 1999, p. 239.

Caro leitor, não desista desse breve texto pelo efeito antecipado ou “negativo” que a epígrafe do martelo de Nietzsche possa suscitar. O imaginário do cinema faz crer que alguns fantasmas são exorcizados por forças que temem, seja uma palavra, gesto ritual ou um objeto. O martelo de Nietzsche talvez contemple os três aspectos dessa força eficaz. Vejamos.

Uma legião de fantasmas rondam os púlpitos evangélicos em períodos eleitorais (como amam esse período!), entre eles, o fantasma saturado que volta e meia dá as caras para assustar (ou melhor, “surtar”) sob a ameaça de fechamento de igrejas. Contudo, a caduquice desse velho fantasma não deve ser subestimada pela sensibilidade democrática dos progressistas “secularizados”, pois basta que alguns mal-intencionados evoquem esse espectro do pânico moral para habitar alguns corpos (não há limite para que cada corpo vire morada provisória ou permanente). Quem admite o poder de um boato ou de uma fofoca (quem nunca foi vítima atire a primeira pedra!) não deve se surpreender com a materialidade desse fantasma, cujo instrumento mais recente passamos a chamar de “Fake News” ou “mentira”, para os mais íntimos.  

Esse breve texto pretende contribuir para “exorcizá-lo” e devolvê-lo ao abismo com seus porcos; sim, penso aqui na famosa cena bíblica dos gadarenos libertos. Pois bem, qual é a “novidade” da vez? Alguns puderam acompanhar a repercussão do pânico moral propagado pelo deputado e pastor Marco Feliciano (PL-SP), conhecido apoiador do candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL). Em meados de agosto de 2022, Feliciano invocou esse velho fantasma sob a forma de um “alerta” urgente: o PT pretende fechar as igrejas caso volte ao poder. O dono dos dentes que custaram R$ 157 mil aos cofres públicos admitiu em entrevista à rádio CBN que emprestou sua boca ao velho fantasma do pânico moral. Em outubro do mesmo ano, precisamente entre o primeiro e segundo turno das eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mandou as redes sociais apagarem o vídeo de Nikolas Ferreira, vereador de Belo Horizonte e deputado federal eleito (PL-MG), no qual “incorpora” o mesmo fantasma. Sabe-se lá por quantos púlpitos esse fantasma andou, mas se alguém ousasse perguntar “de onde vens?”, certamente ouviria: “de rodear os púlpitos e passear por eles”.     

Digam-me: faz sentido a absurda ideia de perseguição religiosa e fechamento dos templos evangélicos em caso de vitória de Lula (PT)? Em certo sentido, essa pergunta é retórica e o mais sensato é, convenhamos, não! Obviamente, não! Contudo, o que consideramos “obviedade” pode ser mais invisível que alguns fantasmas invocados com certa frequência, pois estes tocam os corpos e seus afetos. Seu habitat “natural” é o corpo, especialmente quando se depara com a diferença. Voltemos à pergunta: por que o corpo de ideias desse velho fantasma é absurdo? Em primeiro lugar porque decidimos por um pacto social – que chamamos de Estado Democrático de Direito – no qual a liberdade religiosa é um valor garantido constitucionalmente. Ou seja, a estrutura política do Estado laico garante que o cidadão exerça o direito de professar uma crença religiosa. Trata-se de um direito fundamental. Em segundo lugar porque foi durante o governo do ex-presidente Lula, precisamente em 2003, que foi sancionada a lei nº 10.825 que define as organizações religiosas (assim como os partidos políticos) como pessoas de direito privado. Essa lei garantiu o fundamento jurídico (CNPJ) para criação de igrejas: “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento…”. 

Vejamos alguns dados – outra coisa: os fantasmas da desinformação odeiam dados. Uma reportagem da Folha de S. Paulo, 13 de maio de 2002 mostrou que surgiram “cerca de 1.200 novas denominações religiosas” (cf. informação). A reportagem de O Globo, 23 de março de 2017, mostrou que “Desde 2010, uma nova organização religiosa surge por hora”; o expressivo número de entidades religiosas que se registraram na Receita Federal (67.951) soma-se aos dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), que indicaram a existência de 21.333 CNPJs ativos de organizações religiosas, entre os quais, o estado de São Paulo aparece como o “campeão”, com 17.052 casos registrados (cf. informação). Para finalizar, a Folha de Londrina, de 3 de agosto de 2018, cujo título é “Microigrejas pipocam por toda parte”, afirmou: “Em Londrina, elas surgem com nomes diferentes e desconhecidos. Nos últimos meses, um grande número de novas igrejas apareceram na cidade. Só em 2004, de acordo com a Secretaria Municipal da Fazenda, foram fornecidos 32 alvarás para novas igrejas ou associações religiosas funcionarem” (cf. informação).

O Censo de 2010 havia confirmado o padrão difuso de crescimento dos evangélicos que saltou de 15,4%, do Censo de 2000, para 22,2%, o equivalente a 42,2 milhões de pessoas declaradas evangélicas. Em minha pesquisa de mestrado (TELES, 2021), desenvolvida a partir de dados acumulados desde 2009, procurei demonstrar o ímpeto expansionista de pequenas igrejas pentecostais autônomas, especialmente entre as camadas populares das periferias urbanas. Os dados quantitativos apontaram que a maioria foram criadas a partir da década de 2000 e todas, sem exceção disputavam o reconhecimento jurídico (CNPJ) para afirmar o estatuto ontológico de igreja autêntica. Ao longo de pouco mais de dez anos pude acompanhar a ascensão de lideranças que fundaram as próprias igrejas; pequenas garagens e bares transformam-se em templos religiosos. Algumas delas “fecharam” as portas por diversos motivos, entre os quais, a intensa competição por fieis. Jamais ouvi casos de “fechamento” por perseguição do poder público – que, aliás, as legitimam com o reconhecimento jurídico e isenção fiscal. 

Constata-se, portanto, que as igrejas evangélicas – desde as pobres e periféricas às ricas e luxuosas – usufruíram da liberdade religiosa constitucional durante os governos do PT mais do que admitem ou mais do que estendem esse direito à outras religiões, a exemplo da demonização que alguns promovem dos cultos afro-brasileiros. Algumas lideranças evangélicas participaram dos governos Lula-Dilma, inclusive Feliciano, citado anteriormente, até serem atraídos pelo golpismo de 2016. Então, por que haveriam de serem perseguidos e seus templos fechados em um eventual novo governo Lula? É preciso que ateus e agnósticos, como é meu caso (direito que me cabe – com todo respeito aos crentes), exorcizem esse espectro de vossos corpos e púlpitos? O fechamento de corações, verdadeiros “templos”, precede o fechamento de templos feito por mãos. Em tempo, quem sabe não seja na hora do Espírito Santo reaver o espaço de alguns púlpitos cedidos às notícias falsas. Em tempo, quem sabe não seja a hora de retorno às boas novas. Para finalizar, parafraseio a incômoda epígrafe de Zaratustra, de Nietzsche, mas às avessas: “Deus pode até estar vivo, mas vossas igrejas serão fechadas pela ignorância e normalização da barbárie”. Lição de memória histórica não falta para exorcizar velhos fantasmas: em tempo, o martelo bate e as pedras clamam…

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas – Coleção os pensadores. Nova Cultura, 1999.

TELES, José Edilson. Igrejas rebeldes: uma etnografia do processo de autenticação de pequenas igrejas pentecostais entre as camadas populares das periferias urbanas. Dissertação de mestrado (Antropologia Social). Universidade de São Paulo, 2021 (link para baixar).

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