Em um texto anterior colocamos sob o juízo dos textos bíblicos e da análise teológica o mote: “Deus acima de todos”. Naquele artigo mostramos que essa expressão não se encontra na Bíblia, mas foi forjada ideologicamente para sustentar um projeto de poder que nada tem a ver com o projeto de Jesus de Nazaré.
Contudo, além do “Deus acima de todos”, outro tema, caro a boa parte dos brasileiros, é o da “família”. Neste caso, entende-se por “família”, um núcleo de pessoas formado basicamente por: um homem que é a figura paterna, uma mulher, representando a figura materna, e, por fim, os filhos; esse conjunto é chamado de família tradicional.
Assim como o “Deus acima de todos”, o tema da “defesa da família tradicional” se tornou uma das bases mais importantes da campanha de reeleição do atual presidente, Jair Bolsonaro. Este projeto político consiste em criar uma narrativa a partir de um discurso que se aproveita do medo e, ao mesmo tempo, do ódio, duas emoções poderosíssimas presentes nos seres humanos; o medo é que a família tradicional deixe de existir e o ódio se volta contra qualquer outro tipo de união familiar que não seja aquela do modelo tradicional.
Sobre esse assunto gostaria de, mais uma vez, poder contribuir de algum modo. Como no caso do artigo “É cristão colocar ‘Deus acima de todos’?”, quero tratar do tema da família teologicamente. Novamente teremos como nosso texto base a Bíblia, livro sagrado para cristãos e evangélicos. Mas o que diz a Bíblia sobre esse modelo de família? Seria realmente a família tradicional um valor cristão? Se estamos falando de Cristo, podemos dizer que a família tradicional fez parte do projeto de Jesus?
É comum dizer que a Bíblia valoriza a família, mas temos que nos perguntar: de que família estamos falando? Isso porque, se o padrão for a família do Antigo Testamento, então os defensores da família tradicional estão em maus lençóis: Abraão, por exemplo, toma Agar como mulher enquanto ainda era casado com Sara e isso é aprovado por Deus (Gn 21.9-13). A poligamia na verdade é comum aos patriarcas e reis de Israel. Jacó tem duas esposas e duas concubinas (Gn 29-30). Aos reis pode-se objetar que sua poligamia seria condenada pela Lei mosaica (Dt 17.17). Contudo, este texto não parece proibir o homem de ter mais de uma esposa e sim possuir um grande número delas.
Claro, é possível afirmar que se trata de um costume do Antigo Testamento e que estaria abolido no Novo. Que o seja, mas aqui deixo uma provocação, por que a prática de dizimar também não é igualmente tratada como um costume do Antigo Testamento? É oportuno esclarecer que, naquela época, os dízimos eram levados ao templo, que também era casa do tesouro, como impostos. Já não pagamos nossos impostos hoje? Se é o Novo Testamento que conta, porque dar o dízimo se não existe o mandamento sobre dízimos no Novo Testamento, mas somente contribuições voluntárias?
Mas voltemos ao tema da família. O que o Novo Testamento diz sobre esta instituição? Se olharmos os textos com atenção, pasmem, por todas as suas páginas não encontramos nenhum indício da valorização do núcleo familiar que hoje é considerado como “família tradicional”, tal como pretendem alguns cristãos brasileiros. Vamos aos textos.
Jesus mesmo não constituiu família tradicional (Mt 19.12). No evangelho de Marcos, o Nazareno ordena que os seus discípulos deixem o trabalho com seus pais para o seguir (Mc 1. 16-20). Não seria errado Jesus fazer essas pessoas deixarem suas famílias? Como ficou o pobre Zebedeu sem a ajuda dos filhos? E o que dizer da atitude radical de Jesus frente à sua mãe e seus irmãos quando afirma que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs são aqueles que fazem a vontade de Deus? (Mc 3.31-34). Ademais, o que pensar quando ouvimos que aquele que deixar a família por causa do evangelho sofrerá perseguições, mas será retribuído na vida eterna (Mc 10.29s)? Mas isso não é tudo, Jesus fala da divisão que sua mensagem pode causar no seio das famílias (Lc 12.52s).
Esta atitude de Jesus frente à família da época está de acordo com o núcleo de sua mensagem; quando ele afirma que seus irmãos e mãe são aqueles que fazem a vontade de Deus, ele redefine o conceito de família: toda a família é vista agora sob a ótica da fraternidade e da irmandade que não é estabelecida por laços sanguíneos, mas por um ideal: fazer a vontade de Deus que é amar ao próximo e a si mesmo. Aliás, o Deus que não é visto só pode ser amado por meio do próximo que pode ser visto (1 Jo 4.19-21). No reino de Deus não existem mais pais sanguíneos, pois somente Deus é o pai (Mt 23.9); de resto, todos agora são apenas mãe, irmã e irmãos (Mc 3.34).
Ora, se somente Deus pode ser chamado verdadeiramente de pai, então o poder do pai está relativizado. Com isso Jesus pretendia excluir o poder arrogante dos pais que se impunha às mulheres e filhos. Na nova sociedade utópica do Reino de Deus formada de irmãos e irmãs o poder patriarcal, que fundamenta a dominação e opressão, não tem mais sentido de ser.
Indo um pouco além, quando falamos de outros escritos do Novo Testamento não podemos ignorar o que Paulo disse sobre a família. Nas suas cartas observamos que a “família tradicional” é claramente colocada em segundo plano. O apóstolo dos gentios afirma, sem deixar margem para ambiguidades, que preferiria que as pessoas seguissem o exemplo dele e não se casassem (1 Co 7.1), pois o estado celibatário é superior ao casamento. Na verdade, para Paulo, o casamento é considerado como uma fonte de tribulações (1 Co 7.7,8,28), ou seja, uma espécie de perturbação que pode levar a conflitos que poderiam ser evitados.
Por fim, ainda que algumas passagens do Novo Testamento falem sobre uma estrutura familiar de configuração semelhante à família tradicional brasileira, ela nunca é colocada como um valor nela mesma. O que fica claro é que na Bíblia, apesar de todo o respeito e cuidado que se deve ter com o pai e a mãe (Mc 7.9-13; Ef 6.2), a família tradicional não é um projeto de Jesus de Nazaré, pois seu projeto era a família de Deus, composta por todas as pessoas que vivem fraternalmente. A meta do reino de Deus é que todos os seres humanos sejam irmãos e irmãs, ou seja, fraternos uns com os outros, independentemente do fato de comporem ou fazerem parte da família tradicional.
Mas se do estudo feito acima fica claro que a concepção de família tradicional e de “Deus acima de todos” não são bíblicos, de onde eles procedem?Uma rápida pesquisa histórica revelará que, no Brasil, o lema “Deus, Pátria e Família” tem sua origem no movimento fascista Ação Integralista Brasileira (AIB). Este movimento foi criado na década de 1930. Os integralistas consideravam Deus como aquele que ocupa o topo da estrutura hierárquica social, enquanto a pátria tendia a uma proposta de unificação da população brasileira; unificação feita pelo que era considerado a base da sociedade, a família cristã católica tradicional que excluía grupos que não estivessem inseridos em sua classificação. Esse movimento visava combater o que concebia como “liberalismo” e “socialismo. Também não podemos deixar de frisar que, este movimento, contrário a todo e qualquer princípio realmente bíblico, quis impor restrição de raça e fé para os judeus, imitando assim a Alemanha Nazista.
Não precisamos raciocinar muito para perceber que o lema “Deus, pátria, família e liberdade”, do atual presidente Jair Bolsonaro, se assemelha muito com a proposta integralista, apesar de uma diferença de mais de 90 anos entre os dois movimentos. Não quer o mais recente, assim como o primeiro, implantar os valores ditos cristãos como superiores (acima de todos)? Não quer ele, ainda que com ânsia sincera de preservar a família tradicional, impedir a conquista dos direitos humanos e civis para os grupos minoritários? Depois das declarações do atual presidente de que a “minoria tem que se calar e se curvar a maioria”, como não temer alguma tentativa de restrição e sufocamento dos direitos dessas minorias? A partir do que mostramos na análise dos textos bíblicos, podemos afirmar que Jesus aprovaria tal projeto?
Na verdade, a partir da análise exegética, só podemos considerar o “Deus acima de todos” e a “família tradicional” como valores cristãos se pensarmos que o cristianismo é uma criação institucional e que, nesse caso, esse cristianismo não tem nenhuma relação com a proposta de Jesus de Nazaré. Ao que parece, tais princípios refletem mais o medo do diferente do que, propriamente, os textos bíblicos. Enquanto alguns defensores da família tradicional estão preocupados em impor sua agenda de costumes e tradição ao restante da população brasileira, acabam se esquecendo da essência do evangelho de Jesus de Nazaré: o mandamento do amor a Deus objetivado naqueles que se aproximam, independentemente do que são: ateus, agnósticos, budistas, homossexuais, umbandistas, negros, brancos, amarelos, etc.
Tão anti-evangélico como o preconceito é a hipocrisia. Num claro exemplo de demagogia, o atual mandatário da nação, que se intitula defensor da família e da vida, também já defendeu o aborto como decisão do casal (cf. notícia). Contudo, seu machismo e misoginia foram convenientes até onde ele poderia se eximir da responsabilidade de decidir junto: ainda casado com Rogéria, sua primeira esposa, deixou nas mãos de Ana Cristina, que viria a se tornar a segunda esposa, a escolha de manter a gravidez ou interrompê-la.
O atual presidente e muitos de seus seguidores querem impor às pessoas fardos pesados que nem eles conseguem suportar (Mt 23.4). Manter relação extraconjugal (cf. notícia) e defender o aborto não parecem ser atitudes de quem se proclama defensor da família tradicional. Semelhante aos fariseus, estes acabam se esquecendo do essencial: a expressão do amor em ações concretas que diminuam o sofrimento dos pequeninos. De acordo com os evangelhos, no juízo ninguém será perguntado se foi ou não a favor da família tradicional, se combateu ou não a ideologia de gênero, se quis ou não converter o Brasil para Jesus, se fez parte dos evangélicos ou católicos. Não! De acordo com os evangelhos, Jesus dirá para aqueles que foram verdadeiramente seus discípulos:
“VINDE BENDITOS DE MEU PAI, PARA HERDAR O REINO PREPARADO PARA VÓS DESDE A FUNDAÇÃO DO MUNDO. PORQUE TIVE FOME E ME DESTES DE COMER, TIVE SEDE E ME DESTES DE BEBER, ERA MIGRANTE E ME ACOLHESTES, ESTAVA NU ME VESTISTES, ESTAVA ENFERMO E ME VISITASTES, ESTAVA ENCARCERADO E FOSTES VER-ME. OS JUSTOS LHE RESPONDERÃO: SENHOR, QUANDO TE VIMOS FAMINTO E TE ALIMENTAMOS, SEDENTO E TE DEMOS DE BEBER, MIGRANTE E TE ACOLHEMOS, NU E TE VESTIMOS; QUANDO TE VEMOS ENFERMO E ENCARCERADO E FOMOS VISITAR-TE? O REI LHES RESPONDERÁ: EU VOS ASSEGURO: O QUE FIZESTES A ESTES MEUS IRMÃOS MENORES, A MIM O FIZESTES.” (MT 25.34-40).
Referências
ALMEIDA, João Paulo Martins de. “Deus, pátria e família”: os sentidos do fascismo brasileiro, do integralismo ao populismo do século XXI. In: 79Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, n. 7, vol. 2: 163-178, Jul/Dez. 2020. Disponível em: http://www.journals.ufrpe.br/index.php/entheoria/article/view/3855/482483904. Acesso em: 08/10/2022.
BÍBLIA. Bíblia do peregrino. 3ª. ed. São Paulo: Paulus, 2017.