Em artigo anterior “O que dizem vossas mãos, irmãos?” argumentei que a metafísica do pensamento ocidental é marcada por uma herança da linguagem bíblica sedimentada por um processo de longo duração pela tradição judaico-cristã. De modo específico, procurei demonstrar que o fundamento metafísico da culpa cristã produz uma pulsão por sacrifício e, consequentemente, a necessidade de expiação por meio de “bodes expiatórios”. Volto-me agora para mais um aspecto dessa pulsão por sacrifício: a metafísica do perdão. O tema é convidativo, mas não pretendo fazer exegese bíblica, nem mesmo tratar de teologia dogmática – não possuo qualificação para tal. No máximo, valho-me estrategicamente dessa gramática teológica para situar um problema de fundo – talvez psicanalítico: devemos perdoar as vomições do fascismo? Diga-me, estômagos resignados?
É preciso nomear as coisas. Em uma recente peça de campanha eleitoral, Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, aparece pedindo perdão num descompasso com as práticas que se exige de um verdadeiro arrependido: “se as minhas palavras estão te impedindo de fazer a escolha certa, eu humildemente te peço perdão”. Mas, de que “palavras” o futuro ex-presidente pede perdão? Na superfície da moralidade pública, Bolsonaro se refere ao evidente linguajar que o compõe, inclusive na liturgia do cargo máximo da República – que atualmente ocupa. Acerca desse constrangimento, especialmente frente aos eleitores evangélicos, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, em 6 de outubro de 2022, pediu perdão: “perdão a todos pelos palavrões do meu marido, eu também não concordo, mas ele é assim, tem gente que gosta, né?”. Michelle tem razão: Certamente há “quem goste”. Mas esse é o problema? Os palavrões de um “tiozão” do churrasco que ascendeu à presidência da República de fato incomodam na liturgia do cargo, pois o que se espera é a postura institucional de um estadista. Como constatado ao longo da carreira parlamentar e nos últimos quatro anos como presidente da República, os velhos hábitos de Bolsonaro mostram-no incapaz de representar tal postura.
Mas, voltemos ao pedido de “perdão”. A superfície moralista prende-se, com certa razão, às obscenidades que os palavrões são capazes de qualificar (ou desqualificar). Eis a preocupação de Michelle que, de vez em quando, afirma que o marido foi “escolhido de Deus”. Devemos perdoa-lo? Os mais espirituosos diriam que sim e não demorariam a recorrer à famosa sentença bíblica que recomenda perdoar “setenta vezes sete”! Haja complacência! Por essa lógica, poderíamos (até) ser razoáveis e dizer: “vá em paz e não peque mais”, exigindo do “arrependido” uma conversão – uma mudança de caminho. Em nome do estado de “espírito”, até mesmo alguns psicanalistas recomendam o perdão (não acumule para si o tóxico dos outros!). Contudo, no caso de Bolsonaro, o problema é de fundo: os palavrões não são alívios cômicos, acerca dos quais alguns recorrem, mas vômitos de um fascista em veste de estadista! Seu alimento é o vômito do autoritarismo! Ainda que não houvesse palavrões, os golfos de um fascista apresentam-se cotidianamente, pois fazem parte de sua experiência de mundo e com o mundo. Como diz a primeira-dama: “tem gente que gosta, né?”
Pois bem, devemos perdoá-lo de quê? Digam-me, estômagos resignados? Darei breves razões para não perdoar “setenta vezes sete” as vomições fascistas. Devemos perdoá-lo pela naturalização da cultura do estupro?: “jamais iria estuprar você, porque você não merece”. Devemos perdoá-lo por incitar violência contra opositores?: “fuzilar a petralhada” – sentido “figurado”. Devemos perdoá-lo por lamber as botas de torturadores como “Ustra”? Devemos perdoá-lo pela insensibilidade com as vítimas da Covid-19, sobre as quais afirmou recentemente arrepender-se?: “é uma gripezinha”, “e daí”, “não sou coveiro”. Devemos perdoá-lo por imitar pessoas em sofrimento por falta de ar? Devemos perdoá-lo por incentivar discursos de ódio e propagação deliberada de notícias falsas? Devemos perdoá-lo por associar moradores de comunidades pobres ao imaginário fascista de “bandido bom, bandido morto”? Devemos perdoá-lo por associação aos milicianos? Devemos perdoá-lo pela insinuação sexual com menores de idade, caso das meninas venezuelanas: “pintou um clima”? – sobre as quais voltou a pedir desculpa. Por fim, devemos perdoá-lo pela corrosão dos pilares do Estado Democrático de Direito, dia a pós dia? Escolha uma dessas “virtudes” e multiplique os setenta vezes sete em negativo: 490 razões para não perdoá-lo, por dia! Se “perdoar” for entendido como “esquecer”, prefiro “lembrar” para não permitir o mesmo erro.
De fato, nunca é tarde para retratação ou pedido de perdão, como queiram. Atores limitados à temporalidade histórica são sujeitos à mudança de posicionamentos – não sei porque chamamos isso “nobreza”! Contudo, definitivamente, não é o caso da postura de Bolsonaro. Seu pedido de perdão ou desculpa é dissimulado, é hipócrita. Ele mesmo não acredita, pois se alimenta de vomições fascistas. Perdoá-lo, nesse caso, seria sentar-se à mesa com ele – ou, numa linguagem apropriada, partilhar do “pasto” com o gado. “Pai”, afasta de mim esse pasto! Perdoá-lo é para estômagos resignados. Caro leitor, se chegou até aqui, te desejo náuseas (em sentido “figurado”, claro) frente às vomições fascistas que somos submetidos diariamente. Espero que Clio, a musa da história, nos dê 490 razões para não perdoá-lo! A favor da memória histórica, “perdoar” não é esquecer, mas lembrar!