Na campanha política temos ouvido muito a expressão “ideologia de gênero”. Segundo os articulistas da extrema direita, o governo de esquerda quer implantar no Brasil uma “ideologia de gênero” e perverter as crianças, destruindo, assim, as famílias brasileiras. Estas narrativas permeiam as redes sociais incessantemente.
Analisemos, portanto, o que afirmam sobre a “ideologia de gênero”. Acredita-se que a “ideologia de gênero” se constitui uma estratégia marxista artificialmente produzida que desvirtua a natureza e as mulheres, manipula o sofrimento homossexual, porque produz incertezas sobre a verdadeira sexualidade. A ideologia de gênero seria uma conspiração internacional entre Estados Unidos e a União Soviética para destruir a família natural e a estabilidade social.
Esta expressão foi cunhada em 1998 na Conferência Episcopal do Peru pelo opusdeísta monsenhor Oscar Alzamora Revoredo Bispo auxiliar de Lima. Ele publicou uma nota intitulada A ideologia de gênero: Seus perigos e seus alcances. Anteriormente, em 1994 o Papa João Paulo II lançou uma carta às famílias fundamentando sua Teologia do Corpo e indicando parâmetros claros contra o gênero e as feministas. Em 2016 o Papa Francisco cita o Papa Bento XVI, em um discurso aos Bispos na Jornada Mundial do Jovem na Polônia.
Com essa expressão e o medo de que as crianças sejam atingidas, instaurou-se um pânico moral na sociedade. Este se configura “num ‘momento político’ do sexo, no qual atitudes difusas são canalizadas em ação política e de lá um apelo à mudança social”. (Rubin, 1993).
O pânico moral se instaura na sociedade através da disseminação do medo da destruição social, moral, do gênero, especialmente às crianças consideradas o centro da família. Este medo se exprime em hostilidade, raiva moral e demonização de atores sociais tais como a comunidade LGBTI+, as feministas, os intelectuais, os psicólogos, as assistentes sociais e os partidos políticos de esquerda.
Suas características principais incluem: uma culpabilidade imputada à comunidade LGBTI+, feministas, atores sociais responsáveis pela anomia que expandem sua militância a políticos de esquerda denominados “esquerdopatas”.
Existe também uma desproporcionalidade no impacto que gênero teria sobre as crianças se introduzido no currículo escolar, por outro lado, ignorando o dano moral e o risco em potencial quando se ignora a violência de gênero e seus correlatos. A indução a se acreditar no perigo da palavra gênero ou no ensino do respeito à diversidade leva à falta de visibilidade de perigos mais objetivos, tais como abusos sexuais nas escolas e dentro da própria família.
O pânico moral também exige um consenso de que há uma concordância amplamente generalizada (não necessariamente total) na crença de que diante da “ameaça social” algo precisa ser feito. Pais, igrejas, mídia, membros do congresso e políticos devem compartilhar desse consenso, resultando em um combate nas três esferas: familiar, educacional e legal.
Primeiramente devemos observar que crianças não se tornam homossexuais através de ensinos, nem de exemplos. A homossexualidade se constitui em uma condição inata, por isso mesmo denominada de condição afetivo-sexual.
A educação sexual não pretende ensinar as crianças a escolherem seu sexo, e sim prevenir abusos, prevenir doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada na adolescência.
A premissa de que sexualidade deve ser ensinada em casa não se sustenta. O maior número de abusos sexuais se dá dentro da própria família: pais, padrastos, meio-irmãos, irmãos, tios, avós. No Brasil, cerca de 130 casos diários de abuso sexual, dentre os quais na sua maioria crianças de 0 a 6 anos: 40% dos agressores são seus pais; 20% padrastos; e 5% dos agressores envolvem avôs, tios e a própria mãe. As meninas são as mais vulneráveis.
A agenda política conservadora no Brasil maximizou ao extremo o pânico moral através das instâncias governamentais e discursos de membros do atual governo. A ex-ministra da mulher e da família disseminou notícias falsas de que na Suécia os médicos estavam ensinando pais a masturbarem bebês de 6 meses, levantando indignação dos embaixadores do país e mais recentemente extrapolou com notícias de que na Ilha de Marajó crianças eram enviadas pela fronteira com o Suriname (detalhe: a Ilha de Marajó não faz fronteira com o Suriname) “com os dentes arrancados para fazer sexo oral e comida pastosa para fazer sexo anal”. Esta aberração foi falada do púlpito de uma igreja pentecostal com crianças e idosos na sua plateia. Damares desmentiu sua fala uma semana depois, alegando que “havia escutado nas ruas do Marajó”. “O pânico moral se desenvolve quando uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas passam a ser definidas como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade” (Cohen, 2002). A ex-ministra queria inferir que se o candidato da oposição ganhasse, o Brasil enfrentaria essas condições descritas por ela.
A primeira dama, demonizando a umbanda, declarou desde o Palácio que a luta era do bem contra o mal, sendo o mal as pessoas que pensam e agem diferente do que ela intitula ser sua religião. O Estado laico desfeito na prática no Brasil, onde as outras religiões, a não ser a cristã, são desvalidadas e o governo quer dirigir o Brasil dentro da sua crença religiosa, ignorando as minorias.
Assim, instaura-se uma agenda moral para influenciar os votos dos evangélicos e católicos, sem distinção, posto que a maior parte da população brasileira se autointitula cristã.
Que o grande público saiba que bases sustentam este pânico moral e consiga discernir o que é melhor para o país em termos de políticas públicas que visem o bem-estar da população independente do seu credo religioso.
Referências
CARRANZA, Brenda & GUADALUPE José Luis Pérez (Orgs.). Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Konrad Adenauer Stiftung, Rio de Janeiro, 2020.
COHEN, G. L. (2003). Party Over Policy: The Dominating Impact of Group Influence on Political Beliefs. Journal of Personality and Social Psychology, 85(5), 808–822. https://doi.org/10.1037/0022-3514.85.5.808
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919