“O que nos faz humanos?”, por Claudio de Oliveira Ribeiro

(Jojo Rabbit)

Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
(“Coração civil”, de Milton Nascimento)

Emocionante do princípio ao fim, “Jojo Rabbit” é um filme extraordinário! Ele nos dá a oportunidade de vislumbrar a realidade dramática e cruel do Nazismo com um tom gracioso e de comédia. Da tela, surgem fagulhas de esperança e labirintos lúdicos que nos fazem crer na vida, no valor da amizade e nas possibilidades de humanização – dimensões cruciais para os dias de hoje nos quais se fortalecem, no Brasil e no mundo, as formas de exclusão social, de preconceitos, de violência e de autoritarismos. O filme, de 2019, dirigido por Taika Waititi, retrata com leveza as atrocidades do Nazismo sem, no entanto, nos tirar de vista o peso desses crimes na história. Há humor, sátira, mas não “distração”. E, além disso, é importante lembrar que as bases ideológicas de tais conflitos se reproduzem crescente e intensamente no Brasil de hoje e invadem cruelmente o nosso cotidiano. O filme nos faz pensar!

Johannes Betzler, o Jojo, com excelente atuação de Roman Griffin Davis, é um solitário garoto alemão que, nos seus 10 anos de idade, já exerce uma fanática admiração por Adolf Hitler. O menino, que deseja fazer parte da Juventude Hitlerista, não demostra ser muito hábil para as atividades desta instituição paramilitar que implicam agressividade destrutiva. Já no seu primeiro acampamento, ele acaba estigmatizado com o apelido de coelho (“rabbit”) ao não conseguir seguir a ordem de matar gratuitamente um desses animais.

O garoto descobre que sua mãe, Rosie, com magistral interpretação de Scarlett Johansson, está escondendo Elsa (Thomasin Mckensie), uma linda garota judia no sótão da casa, como na memorável história de Anne Frank. A mãe de Jojo, cujo marido ausente parece ter desertado para cerrar fileiras com grupos alemães de resistência ao Nazismo, revela, em sua personalidade, muita perspicácia e um encantador apego pelo lúdico. Isto serve de respiro em meio a um ambiente opressivo, xenófobo, homofóbico e autoritário que os cerca. Ela reconhece e respeita a visão política do filho, certamente fruto dos processos educacionais totalitários da Alemanha nazista, e busca educá-lo, ao oferecer contrapontos com belíssimas demonstrações de carinho, incentivo à autonomia e a uma vida de afetos.

O filme nos faz lembrar o controvertido, mas fabuloso “A vida é Bela”, de Roberto Benigni, no qual um pai judeu, acompanhado de seu filho em um campo de concentração nazista, usa a imaginação para fazer o menino acreditar que estão diante de uma grande brincadeira e, assim, protegê-lo do terror e da violência que os cercam.

Em “Jojo Rabbit”, Hitler, cuja interpretação foi feita pelo próprio diretor do filme, é o amigo imaginário do garoto, ora se colocando como um idiota atrapalhado ora reproduzindo os discursos agressivos e violentos do ideário nazista. Jojo, em diálogo com essa figura imaginária, numa forma de confronto entre ego e superego, teve que enfrentar seu nacionalismo cego enquanto a Segunda Guerra Mundial prosseguia e dava mostras dos preconceitos nos quais ela foi engendrada e da violência que ela protagonizou.

Depois de várias tentativas frustradas para expulsar a jovem judia, Jojo, que nos acampamentos da Juventude Nazista havia angariado vários problemas físicos, incluindo cicatrizes no rosto, começa a desenvolver empatia e a desconstruir preconceitos nos encontros e desencontros com Elsa. O convívio das diferenças, enorme desafio da vida humana em qualquer tempo e lugar, passa a ser a ponte, a possibilidade, o caminho de superação das culturas de ódio e violência.

O filme também retrata com maestria diversos temas feministas. A começar pelas hipérboles e caricaturas mostradas nos discursos nazistas que discriminam a mulher e a colocam como inferior e subalterna. E mais: doutrinam as crianças e adolescentes desta forma. No entanto, tais cenas do filme, muito bem construídas, aliás, de fato mostram a realidade do que está nas mentes de grupos conservadores, do passado e de hoje. Para isso, basta observar as ações de governo no Brasil [de 2019]. Mas, Rosie e Elsa mostram o outro lado da moeda: determinação, firmeza, inteligência, capacidade de enfrentamento, “sem perder a ternura, jamais”.

“Jojo Rabbit” mostra também um outro ponto: o coração das crianças e adolescentes. De um lado, o filme mostra a fragilidade delas diante da força ideológica nazista. E aí se encontram as famosas “fake news”, tão em moda hoje na ação dos grupos políticos e religiosos conservadores, mas que lá já estavam intensamente presentes, sedimentando o poder autoritário, opressivo e violento. No entanto, por outro lado, o filme revela a singeleza da amizade das crianças. Lindos os abraços de Jojo e Yorke (Archie Yates), seu amigo (real e não imaginário), que diante das sombras e dos escombros da guerra, concluem que não é razoável que sejam nazistas.

Jojo é aquela criança que, como enfatizam alguns diálogos importantes do filme, “precisa decidir o seu caminho”. São perguntas existenciais precoces, mas cruciais para as crianças na tela e para cada um e cada uma nós nas cadeiras do cinema. E como na canção popular, “Fico com a pureza das respostas das crianças: é a vida, é bonita e é bonita”.

A vida plena e abundante, para lembrar o Evangelho de João (10.10), é sinalizada por variados caminhos e imagens. Em diferentes e importantes partes do filme, por exemplo, surge, em meio aos dramas, perdas e incertezas quanto ao futuro dos protagonistas, a dança. Ela é possibilidade de encontro gratuito com o sentido da vida. Dançar nos leva ao equacionamento inconcluso e criativo das inquietações da existência, nos aproxima do humano em suas falências, inglórias, potencialidades e realizações. “Eu só poderia crer em um Deus que soubesse dançar”, assim falava o sábio Zaratustra, de Nietzsche, pois é “sério e grave o espírito do pesadelo”. “Não é com cólera, mas com riso” que matamos nossos demônios. Dançar diante do caos parece loucura. Da mesma forma que rir vislumbrando a violência dos totalitarismos, como no filme, parece tolice. E falar de amor, como Rosie e Elsa repetidas vezes o fizeram com Jojo, mais ainda. Porém, como esse filósofo mostrou: “Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura”. E o filme nos faz voar com Jojo, com as borboletas em seu interior que sinalizam a sua capacidade de amar – momento mágico do filme. Outra vez o filósofo: “para saber de felicidade não há como as borboletas e as bolhas de sabão”.

E a fé, que é o salto onde lamento e júbilo se encontram, lutas e prazer se tangenciam, paz e justiça se beijam, chega até nós. “Quando sou fraco, aí é que me descubro forte” (II Coríntios 12.10). “Quem com lágrimas semeia com júbilo ceifará” (Salmo 126.5). “Mudaste o meu pranto em dança, a minha veste de lamento em veste de alegria, para que o meu coração cante louvores a ti e não se cale” (Salmo 30.11).

Com as lágrimas escondidas que correram dos meus olhos ao final do filme, com a visão antenada na crueldade dos governantes [da época do filme] de nosso país e dos grupos que reproduzem suas ideologias de violência e de morte, com os olhos pregados no futuro dos desvalidos como Jojo e Elsa, dos meninos de rua do Rio de Janeiro, de toda a criançada desse país, do destino da juventude e das sofridas mulheres, e do que está por vir para o meu filho Guilherme e meus sobrinhos e sobrinhas queridas, busco nesta memória a esperança. Pois creio que memória é esperança.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *