A passagem do pensamento teocêntrico para o antropocêntrico trouxe ao indivíduo uma nova visão de mundo, não mais baseada apenas na fé, mas também, e primordialmente, na razão. O avanço da ciência revelou ao ser humano a sua capacidade de apreender os fenômenos que envolvem a natureza e seus elementos. Os processos de descobertas e invenções fizeram florescer a lógica do capitalismo, assim, as ações categóricas da atualidade são produzir, consumir, acumular, lucrar, o que têm gerado individualismo, desigualdade social e injustiça. É nessa moldura do cerceamento da liberdade e da degradação da dignidade humana, que Agamben (2009) constrói a ideia de que o ser humano é apenas uma peça da grande engrenagem de uma máquina que visa apenas o próprio poder. Para ele, estamos vivendo uma era de disseminação de dispositivos, devido à progressão do capitalismo. Dispositivo é tudo aquilo que forçosamente controla, manipula ou determina as condutas, as opiniões e os discursos dos indivíduos. O resultado das relações entre os seres e os dispositivos dá origem a outro grupo, os sujeitos.
Mas, esses sujeitos que a máquina do poder produz são sujeitos espectrais, agem de acordo com o que lhes são expostos e impostos sem questionamentos, pois sendo “espectros” não possuem discurso próprio, não constituíram uma verdade própria, são na realidade, dessujeitos. Utilizando-se da figura do direito arcaico romano, Homo sacer, que é “matável”, porém insacrificável, ou seja, só não poderia ser sacrificado em rituais religiosos, Agamben trata as relações entre soberania e o ser capturado por esse poder. Trata-se de um privilégio comum dos governos – inclusive dos que se dizem democráticos – que acontece de maneira silenciosa e camuflada, de apelarem para o estado de exceção. No estado de exceção o soberano utiliza-se dos recursos legais justamente para suspender ou até mesmo anular a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Dessa forma se apresenta a biopolítica, a vida é gerenciada pelo poder e inclusive ele pode gerar a exclusão da proteção jurídica daqueles que não se submetem ao seu ordenamento. Na atualidade, já vivenciamos esse cenário, no espaço de inclusão/exclusão, no estado de exceção.
Para ilustrar, nos valemos da literatura, que é uma das mais francas formas de denúncia das condições humanas que, por meio da ficção e da estética, apresenta-se como espaço antropológico e permite certa compreensão do ser humano no mundo, seus confrontos, anseios, impasses éticos e morais e também a sua fé. É possível encontrarmos diversas figuras homosacertizadas representadas nas obras literárias.
Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan, apresenta um personagem, que se sente mal e morre na rua. As pessoas, mais por curiosidade do que por compaixão, tentam agir ante à situação. Dario é a representação do dessujeito, cuja vida e morte foram insignificantes, como símbolo do homo sacer, tudo lhe foi tirado. Seus pertences pouco a pouco lhe são roubados: abrem-lhe a camisa, afrouxem-lhe a gravata para respirar melhor, e se vão sapatos, gravata, e cinto. Quando estirado no chão aguardando o “rabecão”, o guarda-chuva que ele carregava já lá não se encontrava, assim como o relógio de pulso. Tentam carregar Dario até a farmácia, mas era muito pesado, então foi largado nos degraus da peixaria, sob as moscas. Um senhor gentilmente dobra o paletó do defunto para apoiar-lhe a cabeça. Restava-lhe apenas a aliança, que ele nunca tirava, pois era apertada. Umas cem pessoas bisbilhotavam entre os lados da calçada. Quando chegou a polícia foi aquele alvoroço, e acabaram pisoteando Dario, já sem carteira, sem paletó, o dedo sem aliança. Mas, então, chega um garoto. Negro, humilde, que se aproxima do corpo e acende uma vela, num gesto de condolência e respeito.
As narrativas literárias captam o pensamento, sofrimento e desejos humanos que são desdobrados pela linguagem literária, com suas simbologias, analogias e metáforas, que possibilitam apreender amplamente os sentidos e significados, indo além da linguagem determinada literalmente e historicamente. Agamben (2015) propõe que, para lidar com os dispositivos, um mecanismo eficaz seria a profanação, que significa restituir ao livre uso dos homens tudo aquilo que lhe foi retirado, dando um novo uso, ou um reuso. Nesse seguimento, entendemos a ação de interpretar como força motriz à profanação, uma quebra da normalidade, visando uma transformação. É isso que representa a vela ofertada pelo garoto, pois encerra aquele ciclo de ações que degradavam Dario. Ao invés de tirar, o menino se doa, como referência, no conto, à ética humana. Para Cremonese (2019), a ética é um cuidado com o outro, é considerar a alteridade, ver o outro como realmente é. Dario, o homo sacer literário, representa os sujeitos que perderam a individualidade e sofrem a ação da política, das leis, do capitalismo e de outros sistemas que não têm como prioridade o ser humano e que agem de forma a não considerar seus direitos, sua forma de vida, e esvaziam as experiências, ofuscando as potencialidades em todas as esferas da vida em sociedade.
Não obstante, o conto literário expressa que haverá sempre uma vela a ser acesa, fonte de esperança, afinal, a simbologia da morte não é o fim, mas renovação, recomeço, o que provoca reflexões sobre ética e sua conexão com o agir, a negação da passividade diante à injustiça e jogos do poder. Uma nova era iluminada está por vir. Que as velas continuem acesas.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
AGAMBEN, Giorgio. “O que é dispositivo”, In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, pp. 27-51.
CREMONESE, Djalma. Ética e moral na Contemporaneidade. In: Campos Neutrais – Revista Latino-Americana de Relações Internacionais Vol. 1 Nº 1, Janeiro – Abril de 2019.
TREVISAN, Dalton. Uma vela para Dario. In: https://contobrasileiro.com.br/uma-vela-para-dario-conto-de-dalton-trevisan/ Acesso em 12/11/2022.