O Brasil dedica o mês de novembro para realizar discussões acadêmicas, eventos artísticos, políticos e culturais sobre a importância da contribuição da população negra para o modelo de sociedade que se desenvolveu em território nacional, principalmente ao longo do século XX. A cultura negra pode ser reconhecida em diferentes aspectos de nossa sociedade. Podemos citar algumas contribuições explícitas, como na culinária (feijoada, cuscuz, moquecas etc.), na língua (principalmente na região Nordeste), na música (samba, rock, jazz, bossa nova, mpb, forró, blues, etc.) ou nas artes plásticas.
Do mesmo modo a África se faz presente em características bem sutis do nosso modo de ser, como a maneira como se dá a educação do corpo dos brasileiros em sua auto-expressão (o gingado); o modelo de organização familiar nas camadas sociais populares (com a presença forte da autoridade feminina, principalmente das avós) e até mesmo aspectos da nossa filosofia de vida, expressos em ditados populares, músicas e histórias contadas para as crianças. De fato, como acentuam muitos intelectuais, a presença das culturas de origem africana neste país é tão forte que muitas vezes é difícil distinguir o que é originário da África e o que foi desenvolvido no Novo Mundo.
Infelizmente, o que se nota quando são avaliados os dados estatísticos mais importantes é que, mesmo tendo oferecido uma contribuição fundamental para a construção do Brasil, a população negra foi sub-representada no que diz respeito a distribuição dos benefícios de se fazer parte deste país continental. Os órgãos governamentais e sindicais vêm demonstrando desde o início do século XX a condição de exclusão social da população negra em praticamente todos os espaços e mecanismos que podem oferecer chances de ascensão social – tais como boas escolas, funcionalismo público, posições de destaque no mercado de trabalho etc.
Muito deste terrível quadro se explica pela absoluta falta de políticas públicas para integração da população negra na nova sociedade que surgia com a abolição do trabalho escravo, a imigração europeia e o processo de industrialização e urbanização do país. Desde então pretos e pardos têm sido sistematicamente excluídos das possibilidades de mobilidade social ao longo destas quase quinze décadas e os impactos desta lógica excludente são aterradores. A exclusão da população negra no início do século manteve as famílias numa espécie e limbo social em que os negros acabaram oferendo para a sociedade mão de obra barata e pouco qualificada por gerações. Em muitos casos, a saída por meio da adesão à marginalidade e ao crime foi uma alternativa quase inegociável, principalmente para os homens negros nas grandes cidades.
Ainda hoje as marcas desta exclusão social podem ser vistas em números assustadores. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, por exemplo, a população negra representa 78% das mortes por arma de fogo no país. Em 2021 foi registrada uma média de cinco mortes de negros por dia pela Polícia Militar. As mulheres negras representam uma média de 61% das vítimas de violência obstetrícia nos hospitais. O índice de suicídio de adolescentes e jovens negros no Brasil é cerca de 45% maior do que o dos brancos. Estas estatísticas tristes se reproduzem em quase todos os aspectos da vida social e política no país.
A condição estrutural de exclusão da população negra se torna ainda mais dramática quando são considerados seus aspectos simbólicos. Embora vivamos em uma sociedade formalmente democrática, somo obrigados a conviver com práticas discriminatórias e segregacionistas no cotidiano. Não é incomum que negros e negras sofram constrangimentos racistas nas vias públicas devido a sua estética, cor da pele, textura do cabelo, opção religiosa ou simplesmente por estarem presentes em ambientes onde não se supunha sua presença.
Este clima de hostilidade à presença negra é também alimentado por uma educação formal extremamente deficitária, em que os livros didáticos e práticas pedagógicas nas escolas públicas e privadas reproduzem discursos pseudo-científicos que vão desde um não reconhecimento do protagonismo negro no Brasil à reprodução de imagens sobre a história afro-brasileira associadas apenas à escravidão e à criminalidade. O resultado desta combinação assustadora de fatores foi a produção no seio da população negra de uma autoimagem absolutamente destorcida de si ao longo do século XX. A população negra acabou por criar uma autopercepção baseada em uma visão depreciativa de sua história e de sua cultura, e um paralelo enaltecimento da cultura branca como superior, inatingível, insuperável e merecedora de reconhecimento e celebração.
É neste contexto de batalha discursiva que foi instituída a data 20 de Novembro como referencia para uma celebração das contribuições sociais, políticas, intelectuais e culturais da população negra no Brasil. 20 de Novembro de 1694 foi o ano em que o Quilombo de Palmares, símbolo máximo da resistência negra à escravidão, foi invadido pelas tropas portuguesas após um bombardeamento por canhões. O fato mais interessante deste momento é que mesmo com o quilombo destruído os heróis e heroínas de Palmares não desistiram, se espalharam por todo o território nordestino contando suas histórias e formando novos focos de resistência e luta.
A celebração da data 20 de Novembro é um recado para a população negra de que, mesmo com todas as dificuldades, devemos nos lembrar de nossa história, resistir às investidas do sistema de exclusão e buscar melhores alternativas de vida. Palmares não é mais um lugar, é um estado de espírito. Palmares vive hoje nas mãos, vozes e corpos de cada negro e negra que se orgulha em ao se olhar no espelho. Palmares vive a cada vez que um negro ou negra se nega a sucumbir diante das batalhas cotidianas pela sobrevivência. Palmares existe em cada sorriso diante de uma vida de tristezas, em cada suspiro profundo diante de um olhar discriminatório, em cada gesto de amor quando o mundo insiste em nos oferecer o ódio. Palmares vive na nossa luta, na nossa pele e no nosso sorriso, pois como afirmou o mestre Gilberto Gil, “a felicidade do negro é uma felicidade guerreira”. Viva Palmares! Viva o 20 de Novembro!
Cláudio Roberto dos Santos de Almeida é professor de Sociologia da UNIVASF