“O que significa dizer que eu tenho um corpo? Um ensaio de filosofia existencial”, por Cláudio Roberto dos Santos de Almeida

Certa feita acompanhei um diálogo entre duas pessoas que evidenciava um elemento sociopsíquico característico da vida numa sociedade ocidentalizada como a brasileira. Era um diálogo corriqueiro, que aparentemente não trazia grandes informações sobre a situação socioeconômica do país, algum tipo de fenômeno ambiental ou qualquer outro tema que viesse a despertar em demasia a atenção de pessoas ávidas por novos conhecimentos. Mas, como um bom cientista social, acabei me permitindo ter a atenção direcionada àquele conteúdo – algo que de alguma maneira me trouxe a esta presente reflexão.

Uma das duas pessoas que estavam conversando queixava-se de uma insistente dor de cabeça. Falava para seu interlocutor sobre as técnicas e materiais que já havia tentado utilizar na solução daquele problema, sem que tivesse obtido êxito. Embora este já seja um tema bastante interessante em si, o que me chamou a atenção foi a maneira como o narrador buscava a compreensão de seu amigo. Notei que toda vez que aquele homem falava da dor que sentia, referia-se a si mesmo com o uso de pronomes possessivos. “sinto dor na minha cabeça”, “conversei com o médico e coloquei a minha mão sobre o local pra mostrar” etc.

Esta conversa tão aparentemente banal trouxe a uma reflexão sobre sua estrutura enunciativa. Não é incomum nos referirmos a partes do corpo como algo que nos pertence. Assim eu falo em ter uma cabeça, ter um braço, ter pernas etc. O que de fato uma pessoa quer dizer quando fala de si mesma por meio de pronomes possessivos? Ou melhor, o que o uso de pronomes possessivos ao nos referirmos ao corpo pode nos falar sobre a cultua Ocidental e nossa maneira de perceber o mundo como um todo?

A cultura ocidental foi construída sobre as bases da filosofia racionalista desenvolvida principalmente na Grécia Antiga e aprimorada ao longo de séculos de debates filosóficos, políticos e religiosos. Estes debates tiveram como característica fundamental uma certa ênfase filosófica no fenômeno da razão e no ato de pensar. Do mesmo modo, no âmbito científico e alquímico foi possível observar o desenvolvimento de alguns conceitos como o de essência ou de substância.

Todo o desenvolvimento filosófico e científico do mundo antigo encontrou seu ponto de síntese no âmago do pensamento cristão. O pensamento cristão desenvolvido principalmente a partir do legado grego e romano contribuiu de forma incisiva para a popularização de um conceito muito específico de “natureza” humana. Esta natureza estaria definida pela manifestação de uma certa essência, enunciada pela noção de alma ou espírito.

O cristianismo conseguiu fundamentar as bases de uma sólida filosofia ao mesmo tempo existencial e política baseada no conceito de alma como a verdadeira essência do humano. O mundo seria o local da materialidade, da efemeridade e da aparência, manifesto na finitude da vida biológica e na instabilidade das relações sociais. A essência do humano seria então a sua alma, que permaneceria menos contaminada pela mundanidade conforme os indivíduos assumissem comportamentos mediados pelos dogmas e preceitos ensinados.

Esta noção de essência também ajudou na consolidação da mais sólida dualidade básica do cristianismo, a noção de bem e mal. Fundamentalmente o mal estaria presente nos sentimentos vis, impulsos de desejo e todo tipo de escolhas que nos colocasse mais próximos do reino da natureza e dos instintos. O bem, por sua vez, estaria mais manifesto nas escolhas e comportamentos orientados por uma boa reflexão, uma decisão baseada nos princípios e um cálculo adequado de consequências. Enfim, para o cristianismo o bem ou o bom comportamento individual e social estariam no patamar do adequado exercício de razão.

Após séculos de educação nos moldes da filosofia cristã, nos acostumamos a definir a natureza humana como essencialmente racional, criando um fosso simbólico entre o mundo material (o corpo, a natureza, as coisas e os outros) e o mundo das ideias – sendo esta segunda esfera o lugar da verdadeira natureza dos entes. Esta separação adquiriu estabilidade na nossa forma de descrever e simbolizar o mundo em nosso entorno. A divisão embrionária popularizada pela filosofia cristã entre o ser humano e o mundo vem recebendo tentativas de reparo por meio da noção de posse ou propriedade.

O ato de possuir acabou se tornando um complemento do fato de existir. Assim é possível falar em ter uma cabeça, ter um corpo, ter uma alma, ter uma ideia. Isto como se estes elementos fossem apenas residuais diante de uma essência humanamente inatingível e expressa pelo ato de pensar. Em grande medida a dependência que adquirimos da noção de posse se estende ao nosso modo de relação com o mundo mais amplo. Assim fala-se em ter uma terra, ter uma planta, ter um animal e até mesmo “ter” um outro ser humano, no caso de filhos, amigos, cônjuges etc. No materialismo enlouquecido do mundo contemporâneo esta noção de posse acabou sendo a base de muitas tentativas de busca por plenitude por meio do consumo.

Conforme insistem muitos filósofos, a linguagem expressa e de alguma maneira define o nosso modo mais originário de pensamento, de relação com o mundo e conosco. Dizer que eu tenho um corpo pode ser visto como um modo de resolver no âmbito da linguagem uma separação entre o ser, o mundo material e as outras pessoas em meu entorno. Separação esta que se deu ao longo de mais de dois mil anos de reflexões filosóficas e ensinamentos formais e informais. O uso ostensivo do verbo ter expressa esta tentativa silenciosamente desesperada de reunir numa totalidade aquilo que o nosso modo de pensamento ocidental insiste em manter como unidades separadas.

Se formos observar de um ponto de vista mais holístico, esta separação entre o ser humano e o mundo é meramente artificial. Em muitos casos está na base dos principais problemas políticos que temos, como a falta de solidariedade diante do sofrimento alheio ou a ideia de que a degradação ambiental nada tem a ver com nossas vidas. Esta separação está na base também de uma série de problemas existenciais e até psicológicos, como o sentimento de vazio e solidão que afetam boa parte dos indivíduos no mundo contemporâneo.

Para lidar com muitas questões contemporâneas precisamos nos reeducar em nossa relação com o mundo, com os outros, com a natureza. É preciso entender antes de tudo que eu não tenho um corpo, eu sou um corpo em totalidade. É preciso entender também que esta totalidade se estende ao mundo em meu entorno – onde as coisas, os animais, a natureza e os outros me vêm ao encontro e são parte de mim também. Em um planeta habitado por oito bilhões de pessoas não podemos nos perceber como um mero somatório de unidades particulares isoladas. Na era do superindividualismo e da solidão talvez esta reunião seja a grande utopia a ser buscada. Que sejamos um só em nossa convivência e nós mesmos em nossa originalidade!

Referências:

DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. São Paulo: Rocco, 1999.

HEIDEGGEER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

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