Certa feita acompanhei um diálogo entre duas pessoas que evidenciava um elemento sociopsíquico característico da vida numa sociedade ocidentalizada como a brasileira. Era um diálogo corriqueiro, que aparentemente não trazia grandes informações sobre a situação socioeconômica do país, algum tipo de fenômeno ambiental ou qualquer outro tema que viesse a despertar em demasia a atenção de pessoas ávidas por novos conhecimentos. Mas, como um bom cientista social, acabei me permitindo ter a atenção direcionada àquele conteúdo – algo que de alguma maneira me trouxe a esta presente reflexão.
Uma das duas pessoas que estavam conversando queixava-se de uma insistente dor de cabeça. Falava para seu interlocutor sobre as técnicas e materiais que já havia tentado utilizar na solução daquele problema, sem que tivesse obtido êxito. Embora este já seja um tema bastante interessante em si, o que me chamou a atenção foi a maneira como o narrador buscava a compreensão de seu amigo. Notei que toda vez que aquele homem falava da dor que sentia, referia-se a si mesmo com o uso de pronomes possessivos. “sinto dor na minha cabeça”, “conversei com o médico e coloquei a minha mão sobre o local pra mostrar” etc.
Esta conversa tão aparentemente banal trouxe a uma reflexão sobre sua estrutura enunciativa. Não é incomum nos referirmos a partes do corpo como algo que nos pertence. Assim eu falo em ter uma cabeça, ter um braço, ter pernas etc. O que de fato uma pessoa quer dizer quando fala de si mesma por meio de pronomes possessivos? Ou melhor, o que o uso de pronomes possessivos ao nos referirmos ao corpo pode nos falar sobre a cultua Ocidental e nossa maneira de perceber o mundo como um todo?
A cultura ocidental foi construída sobre as bases da filosofia racionalista desenvolvida principalmente na Grécia Antiga e aprimorada ao longo de séculos de debates filosóficos, políticos e religiosos. Estes debates tiveram como característica fundamental uma certa ênfase filosófica no fenômeno da razão e no ato de pensar. Do mesmo modo, no âmbito científico e alquímico foi possível observar o desenvolvimento de alguns conceitos como o de essência ou de substância.
Todo o desenvolvimento filosófico e científico do mundo antigo encontrou seu ponto de síntese no âmago do pensamento cristão. O pensamento cristão desenvolvido principalmente a partir do legado grego e romano contribuiu de forma incisiva para a popularização de um conceito muito específico de “natureza” humana. Esta natureza estaria definida pela manifestação de uma certa essência, enunciada pela noção de alma ou espírito.
O cristianismo conseguiu fundamentar as bases de uma sólida filosofia ao mesmo tempo existencial e política baseada no conceito de alma como a verdadeira essência do humano. O mundo seria o local da materialidade, da efemeridade e da aparência, manifesto na finitude da vida biológica e na instabilidade das relações sociais. A essência do humano seria então a sua alma, que permaneceria menos contaminada pela mundanidade conforme os indivíduos assumissem comportamentos mediados pelos dogmas e preceitos ensinados.
Esta noção de essência também ajudou na consolidação da mais sólida dualidade básica do cristianismo, a noção de bem e mal. Fundamentalmente o mal estaria presente nos sentimentos vis, impulsos de desejo e todo tipo de escolhas que nos colocasse mais próximos do reino da natureza e dos instintos. O bem, por sua vez, estaria mais manifesto nas escolhas e comportamentos orientados por uma boa reflexão, uma decisão baseada nos princípios e um cálculo adequado de consequências. Enfim, para o cristianismo o bem ou o bom comportamento individual e social estariam no patamar do adequado exercício de razão.
Após séculos de educação nos moldes da filosofia cristã, nos acostumamos a definir a natureza humana como essencialmente racional, criando um fosso simbólico entre o mundo material (o corpo, a natureza, as coisas e os outros) e o mundo das ideias – sendo esta segunda esfera o lugar da verdadeira natureza dos entes. Esta separação adquiriu estabilidade na nossa forma de descrever e simbolizar o mundo em nosso entorno. A divisão embrionária popularizada pela filosofia cristã entre o ser humano e o mundo vem recebendo tentativas de reparo por meio da noção de posse ou propriedade.
O ato de possuir acabou se tornando um complemento do fato de existir. Assim é possível falar em ter uma cabeça, ter um corpo, ter uma alma, ter uma ideia. Isto como se estes elementos fossem apenas residuais diante de uma essência humanamente inatingível e expressa pelo ato de pensar. Em grande medida a dependência que adquirimos da noção de posse se estende ao nosso modo de relação com o mundo mais amplo. Assim fala-se em ter uma terra, ter uma planta, ter um animal e até mesmo “ter” um outro ser humano, no caso de filhos, amigos, cônjuges etc. No materialismo enlouquecido do mundo contemporâneo esta noção de posse acabou sendo a base de muitas tentativas de busca por plenitude por meio do consumo.
Conforme insistem muitos filósofos, a linguagem expressa e de alguma maneira define o nosso modo mais originário de pensamento, de relação com o mundo e conosco. Dizer que eu tenho um corpo pode ser visto como um modo de resolver no âmbito da linguagem uma separação entre o ser, o mundo material e as outras pessoas em meu entorno. Separação esta que se deu ao longo de mais de dois mil anos de reflexões filosóficas e ensinamentos formais e informais. O uso ostensivo do verbo ter expressa esta tentativa silenciosamente desesperada de reunir numa totalidade aquilo que o nosso modo de pensamento ocidental insiste em manter como unidades separadas.
Se formos observar de um ponto de vista mais holístico, esta separação entre o ser humano e o mundo é meramente artificial. Em muitos casos está na base dos principais problemas políticos que temos, como a falta de solidariedade diante do sofrimento alheio ou a ideia de que a degradação ambiental nada tem a ver com nossas vidas. Esta separação está na base também de uma série de problemas existenciais e até psicológicos, como o sentimento de vazio e solidão que afetam boa parte dos indivíduos no mundo contemporâneo.
Para lidar com muitas questões contemporâneas precisamos nos reeducar em nossa relação com o mundo, com os outros, com a natureza. É preciso entender antes de tudo que eu não tenho um corpo, eu sou um corpo em totalidade. É preciso entender também que esta totalidade se estende ao mundo em meu entorno – onde as coisas, os animais, a natureza e os outros me vêm ao encontro e são parte de mim também. Em um planeta habitado por oito bilhões de pessoas não podemos nos perceber como um mero somatório de unidades particulares isoladas. Na era do superindividualismo e da solidão talvez esta reunião seja a grande utopia a ser buscada. Que sejamos um só em nossa convivência e nós mesmos em nossa originalidade!
Referências:
DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. São Paulo: Rocco, 1999.
HEIDEGGEER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.