“O que é civilização?”, por Daniel de Moura

John Ruskin, crítico de arte que impressionava Proust, num contraponto com a razão e dando ênfase à sensibilidade subjetiva disse: “as grandes nações escrevem sua autobiografia em três livros: o de seus feitos, o de suas palavras e o de sua arte. Para entender um é preciso ler os outros; contudo, o mais autêntico é o terceiro.”

Imaginem o tédio de viver numa melancólica existência social sem as lamparinas ou luzes piscantes coloridas que enfeitam as árvores de natal. A evolução, que está ligada às construções físicas e de ideias, nos revela as vantagens do colapso do império romano que trouxe desenvolvimento ao mundo ocidental e constituiu a civilização com produção de livros, homens intelectuais e grandes construções.

Mas afinal, o que é uma civilização? Há quem acredite que civilização é dizer bom dia todos os dias, porém, isso é apenas um resultado agradável da civilização. Vontade e poder criativo? Talvez. O fato é que o homem civilizado precisa de um lugar no tempo e no espaço. Para entender a civilização ocidental é importante compreender o papel do cristianismo em sua história. Durante séculos todos os intelectuais estavam ligados à Igreja e a civilização ocidental foi formada a partir dessa relação. Na Idade Média, a Igreja demonstrou todo o seu poder não sofrendo os inconvenientes do feudalismo, conservando e expandindo suas terras, num período em que os homens assumiam enormes influências com suas posições clericais. A vida intelectual e afetiva das pessoas era inspirada pelas igrejas e dentro dos restritos e escuros mosteiros descortinava-se uma riqueza que só era possível sob o esplendor eclesiástico, manifestando que a mentalidade medieval traduzia tudo em símbolos.

Naquela época, o que era edificado para a glória de Deus e da Igreja, nos dias de hoje, é para glória de Mammon. Desde o século XIX mantem-se o status quo e o lucro continua o deus do século, sobressaltando a ótica da miséria mesmo diante dos esforços de uma sociedade que tenta melhorar a condição humana num mundo com histórico de pogroms e de defesa de homens escravos como propriedade.

Aqui no Brasil, Dorival Caymmi cantava que na Bahia, sua cidade natal, havia uma igreja para cada dia do ano com a música “365 Igrejas” e que a formação de uma pessoa seria marcada pela benção cristã: nascimento, batismo, crisma, casamento e filhos – dando ênfase à Igreja Nosso Senhor do Bonfim.

O tempo passou e o século vigente e a comunidade protestante neopentecostal passou a ocupar um significativo espaço social marcado pela defesa do acúmulo de riqueza e grande influência política. Os neocarismáticos trazem ao púlpito a teologia da prosperidade, pregando que a fé está ligada à doação de dinheiro para as igrejas e que só é possível ser um cristão verdadeiro testemunhando a fé desdobrada em bens materiais adquiridos, o que faz encher os templos com um grande público apostando nessa ideia.    

Mas há uma grande diferença entre os líderes religioso e os ofertantes. Os cidadãos que lotam as igrejas pagam inúmeros impostos, ao contrário dos pastores. É comum ler nos jornais as contestações sobre as isenções tributárias das Igrejas, como por exemplo a Igreja Internacional da Graça de Deus, que tem uma dívida tributária de dezenas de milhões de reais. Com mão de obra grátis dentro dos templos, os fiéis auxiliam nos cultos e na arrecadação de ofertas financeiras e os pastores, que no final das contas não recolhem os tributos devidos, por vezes são chamados para prestar contas na justiça com processo trabalhista litigioso de outros pastores reclamando direitos não honrados por outros pastores contratantes.

É verdade que no Brasil, um país laico, a Constituição Federal diz que os centros religiosos de qualquer religião têm imunidade tributária, mas, pera lá… isso não quer dizer que estão livres de qualquer tipo de tributo. Existem taxas e contribuições com finalidade específica nas quais as Igrejas não são imunes, mostrando que há sim diferença entre imunidade e isenção, que no caso, traz a obrigação de pagamentos específicos, considerando que algumas Igrejas funcionam como empresas e transcendem o propósito espiritual.

É mister informar a importância do serviço social da igreja na sociedade, realmente são inúmeros, porém, os seus privilégios tributários precisam ser discutidos. O não pagamento de impostos sobre renda, patrimônio e serviços por inúmeras vezes traz denúncias de fins lucrativos e os líderes, em patamar de milionários, são citados inclusive por revistas como a Forbes. Os impostos não pagos pelas casas religiosas recai sobre a população que já carrega um fardo nada leve como contribuinte. Os pastores vociferam o apelo no dízimo diante de púlpitos em templos faraônicos, enquanto protegem seus interesses através da bancada evangélica que na política atual, e estão com força total nos bastidores políticos. O grupo evangélico, até esse ano, conta com 103 Deputados Federais e 13 Senadores.

O benefício é tanto que a polêmica se estende ao não pagamento de impostos sobre os imóveis comprados e colocados para serem alugados pela instituição religiosa, com o dever do dinheiro arrecadado ser destinado para as atividades religiosas ou sociais, o que deixa qualquer cidadão com a pulga atrás da orelha, tendo investigações mostrando pastores e bispos aproveitando-se dessa imunidade para acumular riquezas particulares, sendo denunciados por jornais, com a Receita Federal cobrando milhões de reais por fraude em diversas Igrejas.

Em 2017, a Câmara Municipal da cidade de São Paulo aprovou a isenção de taxas para as igrejas e, após, o prefeito da época João Dória, vetou. Hoje existe o Projeto de Lei 3050/21 que se for aprovado, determinará que templos de qualquer culto paguem contribuições para o financiamento da seguridade social, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), por exemplo. O presidente Bolsonaro disse que no seu governo não criaria qualquer imposto para as igrejas sob o contentamento e aprovação da bancada da Bíblia. O mesmo presidente que apesar de ter vetado o orçamento secreto sabendo que a sua base manteria as verbas públicas para projetos de parlamentares sem a prestação de contas detalhadas deixando de lado o princípio da transparência.

Orçamento Público é o pilar da democracia. Diante desse contexto, devemos ser desacreditados como civilização? Não necessariamente – o que não impede de não nos contentarmos com o que acontece em torno de nós. Como diz o slogan deste site: “profanar é restituir o sagrado ao uso humano comum.”

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