“Eu vi um menino correndo…”, por Cláudio de Oliveira Ribeiro

(“A hora da estrela”)

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha (no ar)
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha.
(“Força estranha”, de Caetano Veloso)

Certa vez, quando jovem, ao final de um ano, vivendo a sensação melancólica do Natal que sempre se achegava ao meu coração nessas épocas, fui assistir ao filme “A hora da estrela” (1985). A obra, que marcou a estreia de Suzana Amaral como diretora, é inquietante, reflexiva, dilacerante. Momento mágico e trágico que revela a vida, os dissabores e os amores que ela traz. 

A trama, baseada no romance homônimo de Clarice Lispector, conta a história de Macabéa (Marcélia Cartaxo), uma jovem imigrante nordestina que com dezenove anos de idade, órfã de pai e mãe e que ainda perdera a tia que a havia criado, vive na fria cidade de São Paulo. Ela trabalha como datilógrafa em uma pequena firma e vive em condições precárias em uma pensão miserável, onde divide o quarto com outras mulheres, mas vive em solidão, fruto dos seus desencontros com o mundo urbano e seus valores e padrões de vida.

Encurtando a distância com outros mundos, tem sempre colado ao ouvido o radinho de pilha, melhor amigo e companheiro, uma janela que se abre para o mundo e que a faz alimentar sonhos e fantasias, não isentos de culpas, palpitações e receios. Ela, que enigmaticamente nos cativa em sua feiura, fragilidade e inexistência, não tem grandes ambições na vida, mas, mesmo assim, sente o desejo por viver e ter um namorado. Por que não? Ela conhece Olímpico de Jesus (José Dumont), também nordestino, metalúrgico sem grandes qualificações e, por isso, igualmente enredado em difícil situação financeira. Namoram, sem, no entanto, criarem os canais afetivos mais autênticos para desfrutar da comunicação fluida dos próprios sentimentos.

Entre sonhos e realidades, entre a crueza da vida e a possibilidade de futuro, entre o encontro e a impossibilidade de viver, o filme nos faz refletir sobre os meandros que estão entre a existência humana e os laços sociais; entre a vida e a morte.

Macabéa é forte e enfrenta seus dramas. Encara a dor de ser trocada por outra, sua própria colega de trabalho, Glória (Tamara Taxman). Em meio ao mistério e à miséria do jogo de cartas, Olímpico havia de escolher a outra. Mas, madame Carlota, a cartomante (Fernanda Montenegro, sempre genial em suas representações), não abandona Macabéa. Ao contrário, a enche de sonhos. Todos vindos das cartas que revelam o futuro, a fortuna, as possibilidades de amor. Mas, a vida não é assim!

Todas as vezes em que se aproxima o final do ano, eu fico pensando em tantas Macabéas. É fato que deveríamos nos guiar pela alegria do Natal. Eu também reflito sobre as dimensões positivas da vida, as boas expectativas para o ano seguinte, os bons testemunhos e experiências felizes. É um tanto quanto misturado. Como a vida em geral. No Natal, eu me lembro, por exemplo, das mulheres que estão grávidas. Se existem pessoas que podem compreender bem o sentido do Advento do Natal são as mulheres que já passaram pela experiência da gravidez e da maternidade. Cada dia é uma novidade. Alguns parecem longos demais. Outros voam. Coisas para preparar não faltam e… “haja coração”! Para tais mulheres, grávidas de alegria e de esperança, desafios e temores não são poucos, mas elas sabem, como diz a canção de Milton Nascimento, que “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, pois quem traz no corpo essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. 

Não se trata de esquecer a crueza da vida como a de Macabéa. Mas é que quando há gravidez, as pessoas ao redor se mobilizam muito e podem desfrutar do sentido da espera, da esperança, da contagem dos dias. Boa parte dos pais e a maioria dos avós entram no clima, preparam coisas, também se preocupam; contam histórias de outros bebês, como Isabel deve ter contado a Maria no longo tempo em que ficou escondida e refugiada em sua casa, conforme nos conta o relato do evangelho de Lucas (1.56).

Este é o sentido do Advento: “pré-ocupar” da esperança. Tratar de ajeitar o mundo para o novo que vem. Com o passar do tempo, dores do parto, expectativas, choros e sorrisos misturados. Assim é a preparação do Natal! Esperamos um bebê para tirar dos “tronos, os poderosos”, “para despedir vazios, os ricos”, “exaltar os humildes”, como nossos irmãos que vivem nas ruas, ou os que trabalham duro, os iletrados, os que recebem “bolsa família”, os que esperam na fila pela “minha casa, minha vida”, os que não “alimentam pensamentos soberbos”, as muitas macabéas, conforme nos ensina a Palavra de Deus. Sim! Está lá, palpitando na canção descrita no primeiro capítulo de Lucas (v. 51-53). 

E estamos diante da profecia… da palavra-esperançosa… da visão do profeta bíblico Miqueias (5.2-5a.), que setecentos anos antes do nascimento de Jesus sonhava pela paz. Miqueias, corajoso e misericordioso, homem simples do campo, como Amós, outro profeta, muito admirado por Jesus… Profetas com sensibilidade social, defensores dos fracos, dos órfãos, das viúvas, dos estrangeiros e migrantes e pessoas como as protagonizaram esse belíssimo filme. Eles sabiam que Belém-Efrata, lugar de gente pobre e desvalida, “pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá”, seria a fonte a jorrar de esperança. Dela “sairá o que há de reinar em Israel” (v. 2). Belém-Efrata nos mostra o caminho da salvação, com suas ruas empoeiradas e com suas “casas simples com cadeiras nas calçadas”, como na inesquecível canção de Vinícius, Garoto e Chico Buarque. “E aí me dá uma inveja dessa gente, que vai em frente sem nem ter com quem contar […] é gente humilde, ai que vontade de chorar…”. 

E o gosto triste-e-alegre do Natal fica em nossa boca. É o sonho do bebê que virá, da criança que nos ensinará o caminho, e ele já estava lá atrás… “O Senhor os entregará até ao tempo em que a que está em dores tiver dado à luz” (v. 3). É “hora da estrela”. Conflitos nas famílias? Dificuldades no trabalho? Medo do desemprego? Doenças e cirurgias? Estresse e depressão? Amores não correspondidos? Pessoas nas ruas mendigando o pão? Muitas dores nos acompanham…  Mas o amor e a misericórdia, que são coisas do coração, prevalecem. 

E o Advento vai reunindo dor e alegria, frustrações e esperanças, balanços de como foi o ano e desejos bons de como será depois no Natal, para nós e para todo mundo. 

No Brasil, os últimos anos foram muito difíceis, com retrocessos políticos e sociais, e marcado por muitos conflitos políticos e ideológicos. Decorrente deles, certa agressividade entre pessoas, grupos e até mesmo entre familiares e amigos. E vimos também o aumento da pobreza, atentados ao estado de direito, justiça seletiva, rancor político. O quadro parece não ser esperançoso… E o Advento, então, nos arranca lá de dentro do peito a pergunta: quem vai ganhar, a frustração ou a esperança? Ou elas são irmãs gêmeas, gestadas na fé, que olham para a realidade da vida, sem fingir, “sem fugir, nem mentir pra si mesmo”? Sabendo que “agora, há tanta vida lá fora […] como uma onda no mar”, no dizer dessa linda canção de Lulu Santos e Nelson Motta. Não é verdade? 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *