O rito de virada de ano é muito importante para nossa sociedade. Esperamos muito que as coisas boas se renovem. E desejamos que as novidades sejam as melhores possíveis. É um tempo de passagem para o novo. Sonhamos que a virada do ano traga uma transformação na política institucional do país. Somos antifascistas e valorizamos a democracia! Temos grande expectativa pelo fim do projeto mal-elaborado de fascismo.
E se, apesar de tudo, a gente não perceber os microfascimos que sobrevivem em nós, a despeito de nossa militância e ativismo nas conversas e redes sociais? É justamente nas relações cotidianas que as mais inusitadas contradições podem aparecer. É nesse instante que o discurso bem elaborado é contestado. A conversa, a troca e a prática diária são fontes importantes de crítica à vida que vivemos, e podem servir como desafio para a vida que queremos e que vale a pena ser vivida. Por isso mesmo, cabe salientar que o fascínio do fascismo cotidiano constrói relacionamentos sob as bases do autoritarismo que oprime a subjetividade daqueles com quem temos contato.
Como exemplo, os danos do microfascismo sobre crianças são muitos. Sobre elas, o exercício e sedução do poder pelos pais se revela como incontestável. Enfim, alguns podem se ver como tendo a legitimidade de exercer o controle sobre as crianças, os fragilizados e as minorias. Nessas horas de encanto pelo poder, não há qualquer preocupação com os danos decorrentes dessa sujeição. Por isso mesmo, o exercício da autoridade desmedida pode ser de uma maldade imensa. O mundo do “cala a boca” jamais será digno de uma criança. A pedagogia do “faça isso ou não faça aquilo se não vai apanhar” é agressiva e opressiva. Esse fascismo está fundado na ideia de que a violência é um instrumento pedagógico adequado e eficiente. Como não se pode gritar com qualquer pessoa, o fascista grita com aqueles tidos como subalternos e incapazes. Os desdobramentos desse autoritarismo exercido sobre as crianças são significativos e se articulam com consideráveis retrocessos comportamentais.
O fascista é complacente consigo mesmo, mas bem pouco tolerante com os erros dos outros, segundo sua própria concepção. Há severidade com a criança, mas não consigo mesmo. Há um enorme prazer de dizer que as crianças precisam ser assim e assado, fazer isso ou aquilo, bem como obedecer as suas regras nesse ou naquele ponto. O fascismo se impõe com ordenanças e sua forma é agressiva ante qualquer insubmissão. Não entendo que as regras devam ser abolidas, mas penso que devem ser construídas num processo de trocas e aprendizado recíproco. Por isso, a luta é contra o fascismo (ou bolsonarismo) que procura se exercer em nós e sobre os outros.
Se você acha que a violência ensina mais que o amor, lembre-se que Bolsonaro defendeu isso em relação à possibilidade de um filho ser gay. Se você entende que mandar calar a boca é uma forma adequada de se impor, foi exatamente essa a atitude de Bolsonaro quando perdeu os argumentos diante de um repórter. Se você entende que gritar é uma forma eficiente de comunicação, não se esqueça que Bolsonaro já berrou em público com seus funcionários. Se você não aceita ser desobedecido, Bolsonaro trocou até de ministros da saúde por não concordarem com ele. Se você acha que não precisa aprender e possui opiniões imutáveis, Bolsonaro defendeu o que já sabia a despeito das pesquisas em ciência que o contrariaram. Se a sua opinião é mais relevante que as pesquisas acadêmicas e científicas, foi exatamente assim que Bolsonaro agiu. Se o que você pensa é definitivo e só resta encontrar formas de reforço, tal como Bolsonaro, você não quer efetivamente aprender, melhorar, desenvolver.
Enfim, quando perdemos a razão e gritamos com outra pessoa, a mandamos calar a boca, agimos com violência (não apenas física, vale dizer), não aceitamos ser desobedecidos e possuímos opinião inquestionável, estamos na verdade mais próximos do que gostaríamos daquilo que nos opomos. Mas não podemos nos deixar levar! Há uma saída possível!
Constituir uma experiência não-fascista, para usar a expressão e o pensamento de Foucault, permite considerar a vida que vale a pena ser vivida. Importa mesmo produzir uma ética capaz de superar não apenas o fascismo histórico de Hitler e Mussolini (e acalentado por Bolsonaro), mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas. Esse fascismo que nos faz gostar do poder e desejar essa coisa mesma que domina e explora e que se exerce em nós, sobre nós e através de nós.
Nossa tarefa é destronar essa máquina de adestramento que torna a vida do outro impotente, subjugada, deprimida, incapaz, explorada e docilizada. É preciso buscar uma forma de vida mais potente na valorização da diferença, ainda mais em tempos de sua negação. Por isso mesmo, uma ética voltada a uma vida não-fascista é um combate contra o intolerável e a estupidez que tiranizam nossas mais imediatas relações interpessoais.
Dentre as alternativas propostas por Foucault no prefácio ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, aparece a orientação de não se deixar seduzir pelo fascínio do poder que nos torna carrascos dos outros. A pretensão de ter a sua posse e exercê-la inconteste sobre os outros evidencia os perigos do fascismo nosso de cada dia.
Que o fascismo seja expurgado de nossa política em 2023, e que igualmente sejamos muito menos fascistas em nossas vidas cotidianas! Que o falso poder do fascismo dê lugar à valorização das infindas potências que nos circundam e nos atravessam em nossas relações interpessoais. Sim, o outro é uma pessoa! Sim, o fascismo desumaniza!