“A vida é profunda”, por Cláudio de Oliveira Ribeiro

(“A menina que roubava livros”)

Não é sobre ter
Todas as pessoas do mundo pra si.
É sobre saber que em algum lugar
Alguém zela por ti.
É sobre cantar e poder escutar
Mais do que a própria voz.
É sobre dançar na chuva de vida
Que cai sobre nós.
(“Trem bala”, de Ana Vilela)

Compreender o amor de Deus no mundo, a fé e as demais dimensões do belíssimo e profundo encontro entre o divino e o humano é uma aventura que se faz no diálogo e em interpelação constante da realidade da vida. As palavras, sinais e atitudes que destaquem a dimensão da gratuidade e da sensibilidade humana serão sempre canais de esperança; e a esperança alivia o sofrimento e redimensiona o futuro.

Essa visão me faz lembrar um momento em que eu e minha esposa, Magali, fomos comemorar o aniversário de treze anos do Guilherme, nosso filho, assistindo ao filme escolhido por ele, “A menina que roubava livros” (2014). Momento sublime de emoção, lição de vida e de esperança, ambientados nas sombras e nos escombros da guerra.

A trama, dirigida por Brian Percival, conta a história da jovem Liesel Meminger (Sophie Nélisse), uma garota que, depois de perder o irmão e a companhia da mãe que enfrenta problemas políticos com o regime nazista, passa a viver com pais adotivos na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Com a ajuda do pai, Hans Hubermann (Geoffrey Rush), muito acolhedor e afetivo, ela aprende a ler e partilhar livros com seus amigos. Liesel segue o seu cotidiano, marcado pelas leituras, estudos e tarefas domésticas que realiza para Rosa (Emily Watson), sua mãe, quase sempre muito dura com ela e mal-humorada, e ainda encontra algum tempo para brincadeiras com o amigo Rudy Steiner (Nico Liersch).

Apaixonada pela leitura, Liesel acaba desenvolvendo o hábito de “roubar” obras a fim de lê-las para Max Vanderburg (Ben Schnetzer), um judeu que mora clandestinamente em sua casa e por quem a jovem expressa amizade e solidariedade. Os desfechos de uma história assim podem ser imaginados…

O enredo faz uma boa abordagem da sociedade alemã do final dos anos de 1930 ao mostrar a insanidade do nazismo, com a nefasta doutrinação das crianças e da juventude. Com o contexto da guerra, o filme mostra, com realismo histórico, os racionamentos de comida, os bombardeios e o desespero de Hitler com a derrocada. Retrata um regime que oprimiu não apenas judeus, ciganos, comunistas, pessoas homoafetivas, como é comum ser enfatizado em outras produções cinematográficas, mas revela, sobretudo, a opressão do seu próprio povo, especialmente os alemães mais pobres.

A sensibilidade revelada no filme me alcançou em sonhos. Ele me lançou em uma busca, uma jornada… Temos visto que a vivência de uma espiritualidade profunda e arquitetada na vida é muito pouco realçada e valorizada. As visões acerca da espiritualidade e da fé têm sido, em geral, marcadas nas igrejas cristãs e em outros grupos religiosos por forte concepção individualista, especialmente pela relação que têm mantido com a cultura econômica. Isso se dá ao lado de um desprezo pelo cuidado com a natureza e uma desconsideração da criação como um todo, das relações sociais e comunitárias e do compromisso ecumênico com a vida, com a justiça e com os destinos da história e da terra. Para reverter esse cenário, é necessária a elucidação de uma perspectiva salvífica mais substancialmente bíblica, que realce a dimensão ampla e integral que a salvação possui.

O movimento generoso e corajoso da menina do filme nos leva a uma visão, imprescindível para o futuro da humanidade, de uma espiritualidade que seja valorizadora da vida, sensível ao cuidado com a natureza e com os pobres, que diga respeito ao todo, aberta aos mistérios do universo e compromissada com desafios sociais e políticos que hoje se apresentam ao mundo.

Trata-se, conforme eu aprendi com a teóloga Ivone Gebara, de uma espiritualidade centrada na realidade que é corporificada no cotidiano, tanto nas dimensões de prazer como nas de dor, incluindo as mudanças e os processos do corpo, da vida pessoal, da autoafirmação e, ao mesmo tempo, conectada ao compromisso social, à generosidade e à atividade política.

Vislumbramos, portanto, uma espiritualidade que valorize a vida, seja sensível ao cuidado com as pessoas e com a natureza e perceba nela também o lugar de salvação da mesma forma que olhamos para o humano. Esse caminho nos conduz a uma espiritualidade ecumênica em seu sentido mais amplo, que defende os que sofrem e são perseguidos, e aprende com eles, e que se coloca aberta aos mistérios do universo e do mundo, relacionando-os com os desafios sociais e políticos que a vida nos apresenta.

No livro, que é base para o filme, o percurso da narrativa é feito pela Morte. Ela é uma narradora-personagem que, embora ciente de tudo sobre si mesma, não tem total conhecimento e domínio do mundo à sua volta. No enredo, a Morte tenta nos convencer de que, apesar de tudo, a vida vale a pena. No entanto, há um caminho de certa singularidade expresso em uma de suas frases marcantes: “às vezes, quando a vida te rouba, você tem que roubá-la de volta”.

O filme nos revela as sombras, as ambiguidades e os percalços da existência humana. Dilemas profundos da alma. Imagens e desejos da morte. Melancolia e depressão permanentemente presentes, não obstante “choques de transitoriedade” e possibilidades de recomeços, de generosidade e de esperança. O interior de cada ser e a realidade circundante, perigosa e repressiva, ambos prenhes de passagens secretas reveladoras da fragilidade humana e da potência, estão interligados ora amável ora dolorosamente. São abundantes as metáforas que surgem das atitudes da graciosa Liesel, dos diálogos marcantes que travou, das atitudes inspiradoras pela vida.

As cenas desse filme nos fazem pensar que a nossa espiritualidade, uma vez recebida sob os influxos divinos de uma decisão existencial que valoriza o amor, a justiça e a alteridade, pode produzir diferentes frutos. Compreendemos que, pela graça de Deus, “uma força estranha no ar” move e remove percepções a ponto de vermos o que não está mostrado: que “um outro mundo é possível”, conforme nos indicaram os Fóruns Sociais Mundiais, que as pessoas têm valor independentemente de suas condições sociais e econômicas, que o amor de Deus é preferencialmente direcionado aos mais pobres, que a paz e a justiça andam juntas, que o amor e o respeito devem prevalecer nas relações humanas, que a salvação vem de Deus e é universal, não se limitando a uma igreja ou religião específicas, que Deus é maior do que todas as coisas.

Esse tipo de espiritualidade não se aprende em conceitos teológicos, filosóficos ou políticos. Ele vem com “a mania de ter fé na vida”, presente de Deus para tantas Liesels.

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