Os ciclos que compõem os sentidos que atribuímos à vida – ou à morte – costumam nos brindar com a repetição das coisas ao mesmo tempo em que se apresentam como novidade. Tendo passado o ciclo festivo do Carnaval, em uma semana do mês de fevereiro, retomamos o rumo ordinário dos papeis sociais invertidos: da exuberância dos corpos festivos à moderação do cotidiano do trabalho. No caso brasileiro, a suspensão do ciclo ordinário da vida regida pela lógica do trabalho logo dará lugar a outros ciclos festivos marcados pelo calendário da tradição judaico-cristã: da paixão passaremos ao natal, da culpa passaremos ao consumo e, em seguida, o carnaval novamente. Como disse acima, somos brindados pela repetição, uma dádiva dos ritos.
A propósito, por falar em “repetição”, nada melhor que voltarmos ao horizonte das utopias ocidentais que repetidamente desejamos conquistar: o Paraíso perdido – onde jamais estivemos. Do ponto de vista da organização social, pouquíssimos privilegiados neste mundo reproduzem um Jardim privado à custa dos excluídos e explorados enquanto se gabam do mérito pessoal. O medo de perder os privilégios os mantém em jardins particulares. Além disso, os afortunados desse Paraíso consideram que os que vivem à margem desse Jardim sitiado não se esforçaram o suficiente para conquistá-lo e, com frequência, criam obstáculos para manter a espada do anjo do privilégio sempre afiada. Habitar o Jardim privado tornou-se o mantra das doutrinas neoliberais: o privilégio se justifica pela lógica meritocrática segundo a qual alguns – leia-se a maioria – foram mais “expulsos” que outros do Jardim, agora fechado.
A propósito, novamente, o horizonte de desejo desse Jardim sitiado foi tema do enredo “Delírios de um paraíso vermelho”, da escola Acadêmicos do Salgueiro, no Carnaval de 2023, numa bela homenagem ao profeta carnavalesco, Joãozinho Trinta. Um espetáculo das cores e dos corpos, diga-se (!), na representação do embate entre a morte e a vida. O Paraíso vermelho do samba abriu alas para personagens do Paraíso edênico revisitado: Adão e Eva trouxeram vida junto à maçã, “doce” símbolo do prazer, mas também da exclusão e da morte (Não, não é a representação de Adão e Eva do ideal branco da pintura “A queda do homem e o lamento”, de Hugo van der Goes); a Serpente destilou – ou melhor, desfilou – sua habilidade de encantamento; os quatro cavaleiros do Apocalipse marcharam levando consigo a denúncia da falsa esperança, destruição e morte; os sete pecados capitais denunciaram a ausência de empatia e solidariedade; anjos e demônios duelaram e dançaram na avenida. A alegoria do enredo “Delírios de um paraíso vermelho” mostrou ao mundo, literalmente, a capacidade crítica de uma expressão artística. Repetir é dizer novamente de modo diferente.
O que nos interessa aqui é pensar no modo como o Paraíso edênico é apropriado criticamente pelo Paraíso da avenida, ainda que temporariamente. Por que, repetidamente, esse tipo de inversão realizado pela expressão artística do carnaval “escandaliza” os idealizadores do Paraíso ocidental da moralidade perdida, tal como assistimos nas redes sociais? Arrisco uma hipótese: a inversão dos mitos fundantes da tradição ocidental, elevados ao longo de um processo histórico à condição de valores eternos e universais, coloca em risco a manutenção de uma história contada (repetidas vezes) por meio de instituições religiosas, políticas e econômicas dominantes. Uma vasta literatura crítica chama isso de “colonização”. Essa “narrativa” dominante, para usar um termo em voga, coloniza o mundo da vida, os corpos e as consciências. Os recursos mobilizados pela expressão artística do Carnaval, tal como o enredo “Delírios de um paraíso vermelho”, suspendem a lógica do cotidiano ordinário e naturalizado para ascender ao papel crítico via entretenimento. A prova de que as estruturas de dominação insistem em manter-se de pé pode ser observada na repetição dos falsos dilemas, ano após ano: o sujeito é incapaz de se indignar com a desigualdade e a opressão da qual também é vítima (ou, no caso concreto do genocídio dos Yanomami), mas vocifera com a inversão de seus personagens míticos preferidos: anjos e demônios. Pois, abre alas que queremos passar!
Ao inverter a regra do jogo, até que não saímos perdendo: se os mecanismos de dominação contaram com a pedagogia da repetição, não menos proveitoso é contar com a lógica da inversão repetidamente. De tanto repetir, um dia o delírio do Paraíso moralista será implodido e dará lugar aos diversos modos de ser e existir. Trata-se, pois, da construção “delírios” autênticos de um Paraíso coletivo – afinal, não custa sonhar e propor ações coletivas. Como diz o trecho da letra:
A estrutura do mito judaico-cristão invertido cede lugar à crítica social, a crítica das estruturas da desigualdade e da intolerância. O Jardim dos exilados inverte o espelho dessas estruturas ao denunciar séculos de exclusão, de apagamento, de violência, opressão e morte. Os exilados do Jardim denunciam as estruturas demoníacas que perpetuam os navios transatlânticos do inferno escravocrata presentes nas relações sociais; os exilados do Jardim denunciam os dispositivos da dominação operada pela ideia de “pecado” na produção de corpos dóceis e obedientes; os exilados do Jardim reivindicam seu quinhão no direito à existência, no direito ao corpo e a vida. Os exilados do Jardim reivindicam a dívida histórica para com seus ancestrais, o reconhecimento de suas divindades e bens culturais. Os exilados do Jardim diaspórico não voltarão para a senzala e repetirão, quantas vezes for preciso, aos insensíveis de coração: abre alas que vamos passar!
Crédito: “Delírios de um paraíso vermelho”:
Autores: Moisés Santiago, Líbero, Serginho do Porto, Celino Dias, Aldir Senna, Orlando Ambrósio, Gilmar L. Silva e Marquinho Bombeiro
Intérprete: Emerson Dias
Enredo: Edson Pereira