“O provisório e o eterno” , por Claudio de Oliveira Ribeiro

(“Três anúncios para um crime”)

O olhar de quem sabe amar
Se umedece quando vê a dor
Fruto da ternura de quem tem doçura
É Simão com a cruz do sofredor.
(“O olhar de quem sabe amar”, de Xico Esvael)

Depois de assistir ao premiado Três anúncios para um crime (2017), de Martin Mc Donagh, fiquei pensando como é a vida, em que devemos apostar e quais os valores que podem nos abrir o futuro. O filme é um drama inquietante que revela “a vida como ela é”, como nos indicava Nelson Rodrigues, com os seus micropoderes, preconceitos e sentimentos diversos. Ele mostra as ambiguidades humanas, os riscos e as possibilidades da determinação pela justiça que tanto desejamos e quase sempre, na sociedade excludente que temos, está distante de nós. Também sugere que viver a vida em suas adversidades não é tarefa de fácil empreendimento e que discernir nem sempre é a “nossa praia”, o nosso mais costumeiro procedimento. 

No enredo, Mildred Hayes, representada brilhantemente por Frances McDormand, inconformada e revoltada pela ineficácia e descaso das autoridades policiais na investigação do brutal assassinato antecedido de estupro de sua filha adolescente, Penélope (Samara Weaving), não mede esforços nem consequências para fazer justiça. Ela decide chamar atenção para o caso não solucionado e cujo processo está parado por sete meses, alugando três outdoors em uma velha estrada na cidade de Ebbing, no interior de Missouri, Estados Unidos. Mesmo localizados em um caminho raramente utilizado e com anúncios sem palavras ofensivas, a inesperada atitude produziu forte repercussão em toda a cidade e trouxe muitas e drásticas consequências que afetaram várias pessoas, especialmente o respeitado delegado Bill Willoughby (Woody Harrelson), responsável pela investigação, Jason Dixon (Sam Rockwell), um policial de precária inteligência e aguçadas ferocidade e intolerância, e a própria Mildred. O filme também aborda, de forma magistral e inquietante, temas como luto, racismo, abuso doméstico e machismo.

Eu assisti ao filme no período litúrgico da Quaresma. Como sabemos, esse é um tempo de renovação, de revisão e de mudança de vida, e não de tristeza, lamúria e lamento sem fim. É certo que nessas ocasiões em breve chega a Páscoa, tempo da alegria e do testemunho da ressurreição. Mas aquela “parada” quaresmal inquietante, reflexiva e inquisidora é como uma faca brilhante e aguda no peito. Essa visão quase sempre me aparece quando vivo esse período litúrgico. E, ao ver o filme, tudo se tornou mais ácido.

É fato que todos os caminhos e processos de reflexão, de revisão e de análise pessoal têm uma pontinha de tristeza. Eles nos mostram como em um espelho que nunca somos o que desejamos ser. Vivemos em meio a ambiguidades, conflitos, dramas e ansiedades. É como sussurrarmos a antiga canção: “Eu hoje estou tão triste, eu precisava tanto conversar com Deus, falar dos meus problemas, também lhe confessar tantos segredos meus…”. Por vezes nos sentimos assim, “pra baixo”, down, amuados ou azedos. No entanto, as possibilidades de mudança, embora nos assustem, nos animam e nos encorajam. Ou isso seria falsa esperança e engano?

Ser de “carne e osso”, com sangue fervendo nas veias e o sentimento à flor da pele, é o dado mais real da vida. Poucos conhecem uma canção interpretada por Zélia Duncan, que é uma verdadeira aula de antropologia teológica:

A alegria do pecado às vezes toma conta de mim
E é tão bom não ser divina
Me cobrir de humanidade me fascina
E me aproxima do céu
E eu gosto de estar na terra cada vez mais
Minha boca se abre e espera
O direito ainda que profano
Do mundo ser sempre mais humano
Perfeição demais me agita os instintos
Quem se diz muito perfeito
Na certa encontrou um jeito insosso
Pra não ser de carne e osso, pra não ser

É a tentação de não ser humano! Certa vez, com um grupo de estudos, ao lado de gente muito querida, crítica e aberta ao novo, revisitamos o conhecido texto bíblico das tentações de Jesus no deserto (Lucas 4). Diferentes das formas de intimismo e de moralismo religioso, tais palavras questionam os métodos de assistencialismo, de domínio e de exibicionismo possíveis, tanto na religião como na vida em geral. Transformar pedras em pão, ter o domínio dos reinos e poderes, saltar com segurança do ponto mais alto… Não! Esse drama simbólico/espiritual, assim como o filme, nos leva a pensarmos para fora de nós mesmos e termos, a partir de processos profundos, pessoais e coletivos, a consciência, ainda que precária e provisória, do que é a vida e do que nela há para ser revisto. 

Assim, vislumbramos valores cruciais da vida: a coerência ética, a humildade sincera, o despojamento, o reconhecimento de nossas limitações e erros… E mais do que isso, o espírito quaresmal nos move a discernir os caminhos a serem trilhados.

No filme, Mildred Hayes é concebida como uma mulher durona, implacável, ora vulgar e, não obstante a isso, justa. Além do mais, por vezes é rude, por vezes amorosa, expressa a dor da perda, mas também da culpa, assume sua raiva e angústia e vê sua fraqueza e seu empoderamento se entrelaçarem. Todo esse quadro confere à personagem uma densidade e complexidade singulares, nada que seja óbvio ou simples, como é a vida de qualquer pessoa sofrida e que precisa se deparar com tensões, decisões e adversidades. 

Mildred é estranhamente cativante. Mesmo que não os expresse verbalmente, é possível, por intermédio de suas rugas e olhares, compreender seus sentimentos. E mais: misturá-los com os nossos e com a dor e a luta de milhares de injustiçados neste mundo.

Esse quadro nos faz lembrar as palavras de Rubem Alves: 

A teologia fala sobre o sentido da vida. E quem não será então que, de vez em quando, provavelmente no silêncio das insônias ou naqueles momentos em que a vida de um ente querido se dependura sobre o abismo, que não será, que não terá sido, meio teólogo, invocador de coisas divinas, mágico?… (1982, p. 194).

Mais uma vez ouço ecoar em mim a voz do psicanalista Helio Pellegrino, que tanto marcou minha juventude com seu espírito humanista, crítico e esperançoso:

A cada passo nos defrontamos com o mundo, que nos compete decifrar. Somos nomeadores de mundo, seus intérpretes, aqueles para quem a verdade das coisas se estende como fruto que pesa no ramo que o sustenta. Mas, ao mesmo tempo, somos distraídos e avaros com as coisas. Elas quase só nos interessam na medida de sua possibilidade de matar, em nós, a fome utilitária. (1989, p. 190).

Ah… olhar para dentro de nós mesmos, reconhecer quando estamos no fundo do poço, ver a miséria e a inveja, as rugas da amargura, do rancor e da vingança. Olhar para dentro de nós mesmos e, ao lado, ver as centelhas de paixão, os bons desejos para o outro e para nós mesmos, as possibilidades de luz, um raiozinho talvez, tentar descobrir a imagem de Deus em nós no dia a dia de nossos passos. Ou, como nos disse o teólogo Jürgen Moltmann, em sua Teologia da esperança: perceber “a eternidade imanente do tempo… reconhecer no brilho do temporal e do passageiro, a substância nele imanente, ‘o eterno que está presente’” (2003, p. 35). Esse é o meu desejo.

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