“Do básico pão ao visceral corpo”, por Priscilla dos Reis Ribeiro

As imagens do sagrado sempre me fascinaram… não à toa me debrucei tanto tempo na leitura sobre a iconoclastia bizantina e o retorno dessa querela, já na Reforma Protestante. Representar o sagrado é algo muito sério que mexe com camadas da nossa psiquê que normalmente não acessamos. Mas enfim, vamos à Quaresma, motivo desta pequena reflexão. Da narrativa desta quinta pré-crucificação, guardo com muito amor duas imagens que, a meu ver, sintetizam lindamente a fé que recebi dos que vieram antes de mim, com todos os seus erros e acertos: o lava-pés e a ceia, ou ainda, os significados que absorvi a partir dos fatos: o serviço e a partilha.

Naquela noite, quando no subúrbio do mundo Ele se dedica a cuidar de pés que vagavam em sandálias rudimentares por uma Palestina empoeirada, rasga-se a luz para o fato de que servir é realmente coisa para poucos. A encarnação do Verbo, a própria kenosis já nos alerta que não basta se fazer homem: há que se preocupar com todas as suas pequenezas, pois esvaziar-se é também tocar o imundo, sentir seus odores fétidos, deparar-se com a miséria, o sangue e o suor. O serviço humilde dramatizado com tanta naturalidade pelo Mestre parece reminiscência de um tipo de gente que no evangelicalismo brasileiro não tem vez. Aqui nesse recanto bonito e violento, que normaliza pedir suborno em ouro e mandar imprimir Bíblias com sua própria efígie, o verdadeiro Messias não teria lugar.

E não apenas isso, mas também a existência, na narrativa pascoal, de uma mesa farta e compartilhada é algo que tem se tornado a cada dia mais intrigante. Quem deseja que todos tenham acesso justo aos bens existentes é rapidamente anatematizado, demonizado e cancelado. A comensalidade aqui na terra das palmeiras não é e não pode ser inclusiva, posto que essa gente estranha aos conceitos de merecimento forjados pela teologia colonial, precisa ser afastada dos lugares santos. Pobres, negros e negras, indígenas e LGBTQIAP+… todos esses “malditos” ameaçam o ideal hipócrita que apregoa Deus, pátria e família acima de tudo e de todos. Tempos sombrios estes.

Mas, em contraponto, o tempo litúrgico da Quaresma nos relembra que Deus se fez um de nós e escolheu estar não acima, mas ao lado, não ordenando, mas servindo humildemente, não acumulando, mas partilhando de tudo: do básico pão ao visceral corpo. São tantas riquezas naquela cena, naquela noite, naquele pequeno cômodo e tanto já foi dito sobre esses valores básicos do Evangelho que me questiono diariamente onde foi parar toda a luz que recebemos? O que tem sido feito das oportunidades que a fé no Ressuscitado nos dá de viver uma vida relevante a partir da perspectiva de que é a ressurreição que nos define e com ela, o balaio de conceitos fundantes do cristianismo – esse questionamento precisa rondar as cabeças dos que ocupam os templos, caminham com o Livro Sagrado e se dizem testemunhas do Cristo.

Carregar nos ombros o título de testemunha d”Ele é uma dádiva belíssima e uma responsabilidade aterrorizante. Imagine você: viver para anunciar que a vida se refaz, que a esperança não se pode deter, que recomeços são possíveis! Da mesma forma, faz parte deste legado, anunciar que o Estado pode ser cruel assassino de inocentes, que os religiosos não reconhecem a Deus quando este se apresenta como Ele é e que conluios desleais estão sempre à espreita de quem luta pela justiça. Infelizmente às vezes parece que a noite instaurada na crucificação não arredou mais pé da terra brasileira… sabemos disso pois vivemos 4 anos de trevas densas, quase palpáveis, recentemente. Mas como entender isso se Ele é a luz? Se tudo de bom e de bonito que temos e somos vem de cima, do Pai das luzes em quem não há mudança… onde então nos perdemos? Esta provocação pretende fazer com que a gente se permita refletir no tipo de imagem do sagrado que gera afeto em nós. Sejamos iconoclastas das imagens ligadas ao poder, ao domínio, a opressão; que se detecte em nosso coração o efeito malévolo que causam e que esse tempo de reflexão seja propício a nos fazer restauradores das imagens que nos chegam atravessadas pela Boa Notícia do Evangelho da graça e da vida, sonhado por um Deus que não cansa de se entregar e amar radicalmente. Que a escolha voluntária pelo serviço e pela partilha seja o nosso caminho de volta para casa.

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