“Sobre bordados, empoderamentos e construção do futuro: impressões sobre o filme ‘Entre mulheres'”, por Joana Bahia e Claudio Ribeiro*

Em dias e locais diferentes, assistimos ao belíssimo filme “Entre Mulheres”, um dos indicados para o Oscar de 2023. Nossas impressões, no entanto, se cruzaram em muitos caminhos, e parte delas, expressamos aqui. Não nos resta dúvidas de que o filme nos despertou mais perplexidades do que palavras, mas elas ficaram borbulhando dentro de nós.

Dirigido por Sarah Polley, o longa nos mostra as tensões vividas por um grupo de mulheres moradoras em uma comunidade rural do segmento cristão menonita, isolada em um dos confins dos Estados Unidos. Elas são vítimas de crimes sexuais cometidos por homens da própria comunidade. O enredo exibe as conversas realizadas por um grupo das mulheres nomeado para tomar decisões, que deveriam ser acordadas em um curtíssimo espaço de tempo, quanto ao que fazer diante daquele quadro de violência.

A votação feita por aquelas mulheres acaba por apontar duas difíceis escolhas: ou deixam a comunidade, que era tudo o que elas conheciam até então em suas vidas, ou ficam e lutam para mudar aquele quadro sombrio. Ficar, significaria enfrentar a cumplicidade de quase todos os homens, pois, eles, até mesmo, haviam pago a fiança dos agressores que foram identificados e presos.

No pano de fundo da tomada de decisão, um elemento existencial e religioso profundo para a estruturação da vida daquelas mulheres está presente: a possibilidade de conceder o perdão. Na formalidade de suas fés, inculcadas na trajetória e no cotidiano, ou elas perdoam os seus agressores ou terão de arriscar a perdição eterna.

Como são analfabetas, elas desenham as situações em que vivem, e, nos traços, todas as nuances da situação aparecem. A votação sobre o que fazer empata e é aí que têm início as longas e inquietantes conversas em um paiol. São camponesas, menonitas, e para elas, o celeiro é o plenário, a assembleia, lugar de tomada de decisão.

Para viabilizar esse difícil e angustiante processo são escolhidas entre elas representantes de três famílias para conversarem, refletirem sobre todas as consequências possíveis e apresentarem às demais do grupo a decisão mais adequada. O clima dos diálogos é tenso, emocionante e repleto de gestos e simbolismos. Nele se destacam as irmãs Salomé (Claire Foy) e Ona (Rooney Mara), Mariche (Jessie Buckley), sempre com uma visão muito crítica e cética, e as mulheres de mais idade, Agata (Judith Ivey) e Greta (Sheila McCarthy), que guardam os elementos da doutrina religiosa e da longa trajetória de sofrimento naquela isolada comunidade.

O que se segue são conversas abertas, francas e inspiradoras, que se movem entre a fé, valiosa para elas, a ordenação do mundo e o justo desejo por uma vida segura e livre.

Na ausência dos homens, as mulheres falam (Women Talking, esta expressão no inglês, é justamente o nome original do filme!). Elas revelam os seus sonhos, discutem como colocá-los em prática, se potencializam para expressar o desejo de construir o futuro para elas mesmas, para as filhas e, também, para os filhos; o que abre um leque rico de reflexão sobre o que fazer com os meninos, caso elas decidissem partir.

Fora do protagonismo, e mesmo da quase totalidade das cenas do filme, estão os homens. A exceção é a presença sensível e solidária de August (Ben Wishaw), um professor da comunidade, convidado pelas mulheres para registrar as decisões a serem tomadas, uma vez que elas não sabiam ler ou escrever.

No filme temos um ir e vir no tempo. A violência sofrida não as detém ao tempo presente do corpo dolorido, violentado pelos homens da aldeia. Porém, a projetam para o passado e o futuro como um pêndulo. Decidem sobre o ato de ficar ou sobre o ato de partir, e os expõem como tempos paradoxais. Ficar tem consequências tanto quanto partir. Nada é simples. Viver o presente sem agir é insuportável, mas, para partir, se faz necessário pensar futuros. Tudo muito complexo e perigoso!

A violência aparece nos corpos exaustos, roxos, sem dentes, violentados e forçosamente grávidos. Todos os corpos estão lá, e junto os seus medos, insônias, tremores e as marcas da violência estão ali entre as mulheres.

Aqui, na costura destas palavras, reunimos os nossos olhares e as impressões que tivemos deste magnífico filme. Um olhar é de mulher, Joana: “Quando vi ‘Entre mulheres’, eu tive a mesma sensação de quando li Bordado (Editora Companhia das Letras, 2010) de Marjane Satrapi, artista iraniana, residente na França. Pensei como fazer costuras de momentos femininos em que a violência afeta. Em minha mente, estavam as mudanças que afetam as vidas femininas e que possibilitam as reuniões e os debates para ver o que fazer a partir dessas experiências”.

O livro Bordado mostra, em quadrinhos, como as mulheres iranianas bordavam suas histórias e faziam da arte de cozer um modo de compartilhar experiências. Muitas delas íntimas e dolorosas. Logo após o almoço, elas se reuniam em torno do samovar, o tradicional bule de chá iraniano, para se entregarem a arte da conversa. Sentar-se em torno de si mesmas, é vasculhar as experiências de vida em momentos de grandes mudanças, sejam pessoais, sejam histórico-sociais.

É bom lembrar que “bordado” não é apenas uma costura imaginária, mas é também o nome dado a cirurgia de reconstrução do hímen. Muitas mulheres não esperam até se casarem para dar início a vida sexual. Entretanto, como, no Irã, é esperado que as mulheres se mantenham virgens até o casamento, quando desejam se casar ou são obrigadas a tal, as mulheres que já iniciaram sua vida sexual optam pela cirurgia para serem “aceitas” em matrimônio.

Outros bordados atravessam a história deste livro. A própria Sartrapi, a autora, sua experiência de vida no Irã, as mudanças de regimes que afetaram inúmeras gerações de mulheres também lhe moldaram sua vivência migratória, e também a arte como modus operandi político. O livro Bordado é um cartoon leve, denso e politizado, sendo exemplar na sua singularidade.

Outro olhar, convergente, é de homem, Claudio: “Esse filme me trouxe marcas profundas… Por diversas vezes, tentando me enganar, achei que eu era August, o professor, com sua postura sensível e solidária ao sofrimento daquelas mulheres. Ledo engano. Porém, mesmo assim, vibrei com o empoderamento daquelas mulheres, invejei a sabedoria que brotava de suas palavras e gestos. Tudo muito humano! O que foi, para mim, autenticamente divino. Elas, nos embates da vida, nas limitações e na potencialidade, reinterpretaram as doutrinas e os textos bíblicos que compunham a sua história e cotidiano. Releitura mágica e comovente. Quando elas, envoltas nos dramáticos dilemas, recitaram a Bíblia para lembrar da recomendação de que “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, seja esse o seu pensamento” (Filipenses 4.8) eu, costurando o meu passado e o meu presente, tremi por dentro. Assim, fui, nas propositais escuras cenas do filme, também revendo os meus valores e bordando os meus sonhos”.

Bordar é também um ato afetivo e político. Ele reúne gerações, intimidades, e nos faz pensar o que podemos dizer nos nossos próprios desenhos. Costurar, bordar, alinhavar são formas de pensar o mundo. Ponto cruz, ziguezagues e entremeios, e outras ponderações das ações estéticas também são coisas que trazemos nas ações políticas.

Bordados também nos levam à própria América Latina, nosso chão. Eles se dão na prática transgressora da arpillera, arte têxtil presente na tradição chilena, das bordadeiras da Ilha Negra. Sobras são bordadas em sacos de batatas e farinhas. A poetisa chilena Violeta Parra dizia que uma arpillera é uma canção bordada. Por conta dessa arte, as mulheres chilenas registraram as histórias do tempo sombrio e violento da ditadura de Pinochet. E quem não se lembra das bordadeiras de Timbaúba dos Batistas, no Rio Grande do Norte, que tecem os seus sonhos, buscam a autonomia e não se esquecem da democracia?

E mais uma vez ecoa para nós os versos de Violeta Parra, como em “Volver aos 17”:

Lo que puede el sentimiento no lo ha podido el saber
Ni el más claro proceder, ni el más ancho pensamiento
Todo lo cambia al momento cual mago condescendiente
Nos aleja dulcemente de rencores y violencias
Solo el amor con su ciencia nos vuelve tan inocentes.

E o filme, além de nos encantar, nos deixou inúmeras e arrojadas perguntas:

Em que medida o que nos foi feito também constituiu parte de nossas ações?

Como ter uma educação para o futuro? Como nos educarmos, e como educarmos nossos filhos e nossas filhas? Em que grau educar é um ato de amor e fé?

Em que medida o perdão é necessário? E, para além disso, quando ele é libertador e quando e como ele pode ser confundido com permissividade?

E se as mulheres partirem [no filme e na vida!], como os homens se reinventam? Como eles despertarão para uma outra consciência?

Quando falaremos autenticamente de nossos traumas, nossos desejos e nossa percepção de futuro?

Há, pela frente, muitas madrugadas pelos “celeiros” da vida…

* Joana Bahia é antropóloga e Claudio Ribeiro é teológo. Ambos buscam tecer a amizade, são amantes do cinema e se dedicam aos estudos de religião.

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